Com uma base frágil no Congresso e sem disposição para negociações políticas, o presidente Jair Bolsonaro tem governado por meio de decretos. Desde a posse, em 1º de janeiro, até a última terça-feira (14), ele assinou 134 normativas, em média uma por dia. A prática faz de Bolsonaro um dos presidentes que mais recorreu ao expediente desde a Constituição de 1988, sendo superado apenas por Fernando Henrique Cardoso e Fernando Collor (veja relação abaixo).
Apesar da vigência imediata, os decretos têm eficácia limitada. Podem ser usados somente na regulamentação de leis, ao estabelecer condições específicas para o cumprimento de determinada legislação, ou para reorganizar o funcionamento da administração, com extinção de cargos desocupados e mudanças de atribuições. Não é possível criar novas estruturas de governo ou tomar qualquer iniciativa que gere aumento de despesas.
Foi via decreto, por exemplo, que o governo extinguiu 21 mil funções na burocracia estatal e acabou com o horário de verão. O caminho também foi seguido na adoção de medidas prosaicas, como proibir o uso da expressão Vossa Excelência na comunicação com agentes públicos e definir a atuação do governo na Copa América.
– O decreto serve para tratar do que não é regrado por lei. É válido, desde que não tenha por objetivo exorbitar o poder, o que não é o caso de Bolsonaro – diz o analista político e diretor de documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), Antônio Queiroz.
Há 40 anos acompanhando o cotidiano do Congresso, Queiroz diz que Fernando Henrique e Collor superaram Bolsonaro por protagonizarem condições parecidas de governo. Collor era de um partido pequeno, o PRN, e desprezava o Congresso, negando-se a negociar com os parlamentares. Já o tucano começou um segundo mandato desgastado após denúncia de compra de votos pela aprovação da reeleição e com o Plano Real ameaçado, sobretudo após a desvalorização cambial da moeda em janeiro de 1999. Em ambos os casos, os presidentes preferiam recorrer aos decretos a governar em conjunto com o Congresso.
Com Bolsonaro, a recusa ao diálogo e à prática de concessões políticas, combinada com uma postura de confronto permanente, e a necessidade de apresentar respostas às demandas de determinados grupos de apoio fizeram com que o Planalto priorizasse os decretos. O maior exemplo, aponta Queiroz, foram os dois atos flexibilizando a posse e o porte de armas, inclusive com liberação do acesso a calibres antes restritos às forças de segurança.
– Dessa forma, ele legisla de forma autônoma, dispensa interlocução com o Congresso. Faz isso porque sabe que, se enviasse um projeto de lei nesse sentido, não seria aprovado. O problema é que em muitos casos não há como retroagir. Mesmo que o decreto das armas seja anulado, muita gente já terá comprado a sua – comenta.
Deputados podem derrubar medidas
Em fevereiro, os deputados aprovaram um projeto de lei que sustou os efeitos de um decreto que ampliava o número de servidores com poder para tornar sigilosos documentos públicos. Apenas o PSL, partido de Bolsonaro, encaminhou voto contrário e o governo sofreu uma derrota avassaladora: 367 votos a favor e apenas 57 contrários.
Para o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches, Bolsonaro optou pelo confronto e não pela construção de políticas articuladas com os parlamentares. Autor do renomado artigo no qual cunhou a expressão “presidencialismo de coalizão”, conceito pelo qual quase todos os mandatários governaram o país desde a redemocratização, Abranches diz que a antipolítica preconizada por Bolsonaro paralisa o processo decisório no país.
– O Congresso está travado. O governo não aprova nada, daí ele governa por decreto. É autocrático, e a reação é imediata. Os decretos mais relevantes são contestados. Há um ambiente de instabilidade permanente – diagnostica Abranches.
Tão logo o decreto que liberou o porte de arma a 20 categorias profissionais foi editado, os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, classificaram o texto como inconstitucional. Nos bastidores, ministros de tribunais superiores criticaram a amplitude da norma e o Ministério Público Federal ajuizou ação na Justiça Federal de Brasília pedindo suspensão integral da medida.
– Bolsonaro prioriza os decretos porque ainda está preso à agenda da campanha eleitoral. Ele só dá atenção às pautas ideológicas, como liberação de armas, repressão de liberdades. É um governo de miudezas e picuinhas, sem foco nos grandes temas nacionais – conclui Abranches.
Os presidentes e seus decretos nos primeiros 134 dias de governo
Jair Bolsonaro - 134
Dilma Rousseff (2º mandato) - 61
Dilma Rousseff (1º mandato) - 54
Luiz Inácio Lula da Silva (2º mandato) - 103
Luiz Inácio Lula da Silva (1º mandato) - 132
Fernando Henrique Cardoso (2º mandato) - 138
Fernando Henrique Cardoso (1º mandato) - 127
Fernando Collor - 241
Entenda a diferença
Medida provisória (MP)
Medida editada pelo Palácio do Planalto que passa a valer após assinatura do presidente da República e publicação no Diário Oficial da União. Mas precisa ser aprovada em até quatro meses pelo Congresso para se transformar em lei definitiva, com maioria simples na Câmara e no Senado, em apenas um turno. O governo editou 13 MPs em 2019.
Decretos
Instrumento usado para regulamentar leis existentes, sem poder para alterar textos aprovados pelo Congresso. São assinados pelo presidente da República e passam a valer após publicação no Diário Oficial da União. Pode ser derrubado a partir da aprovação de um projeto de decreto legislativo, que precisa ser votado pela Câmara e pelo Senado. Bolsonaro assinou 134 até terça-feira.