Muitos Lulas forjaram o Luiz Inácio da Silva que nesta quarta-feira (24) vai a julgamento em Porto Alegre. Há o Lula retirante nordestino, o operário, o sindicalista, o preso político e o fundador do PT. Há o Lula três vezes candidato derrotado à Presidência, o eleito para dois mandatos sucessivos, o recordista em aprovação popular, paparicado por líderes internacionais.
Há o Lula que nos primeiros dias de governo levou seus ministros para conhecer a extrema miséria no Piauí, o que governou de mãos dadas com antigos adversários e o que frequentou com desenvoltura os salões da aristocracia nacional. Há ainda o Lula que elegeu a sucessora, fracassou na tentativa de impedir o impeachment e acabou condenado por Sergio Moro a nove anos e meio de cadeia. Há, sobretudo, Lula, a entidade política. E há Luiz Inácio, o ser humano.
Por volta das 16h desta quarta, salvo algum inesperado pedido de vista, a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) terá concluído a análise da apelação do petista. Do veredito dos três desembargadores surgirá outro Lula. O novamente condenado, com a candidatura em xeque e à mercê de um pedido de prisão. Ou o absolvido, cuja decisão de segunda instância pavimenta o caminho para uma sexta tentativa de chegar ao Planalto.
Nas últimas semanas, a tensão pré-julgamento fez aflorar sentimentos antagônicos no ex-presidente. Há o Lula empolgado, que às 23h de uma terça-feira (16) abafada no Rio de Janeiro caminha pelo palco enquanto desfia sua oratória inflamada, magnetizando a atenção dos artistas e intelectuais que ocupam todos os 926 lugares do Teatro Oi Casa Grande, no Leblon. Vestindo um casaco de lã de alpaca, regalo do presidente boliviano Evo Morales, Lula reclama da imprensa, das elites, da polícia e do Judiciário. Se diz perseguido e advoga o direito de ser candidato à Presidência mais uma vez.
— Sou um cidadão de 72 anos de idade, com energia de 30 e tesão de 20. Ninguém é obrigado a me apoiar para ser candidato, mas olha, agora quero ser — avisa, antes de os gritos de "Lula Lá" ecoarem na plateia.
Vinte minutos depois, o ambiente é outro — e o espírito de Lula também. O ato com a classe artística acabou, o petista está agora na casa da escritora Marcia Tiburi, no Flamengo, onde é convidado especial para jantar. Faz calor e os janelões da sala estão abertos, descortinando a paisagem da Baía de Guanabara. Enquanto o risoto com cogumelos não é servido, o petista bebe água e conversa com algumas das cerca de 50 pessoas que estão no amplo apartamento. Conta histórias da infância e, comovido, lembra-se da mulher, Marisa Letícia, que morreu no ano passado, após complicações causadas por um acidente vascular cerebral sofrido no dia 24 de janeiro. Na mesma data, um ano depois, o ex-presidente será julgado pelo TRF4.
— A morte dela é muito forte para ele. Está de luto ainda — comenta uma testemunha do desabafo.
Assim tem sido a vida de Lula às vésperas do fatídico julgamento desta quarta-feira em Porto Alegre. Como persona pública, o animal político redespertou com rara disposição ao embate. Como pessoa privada, o homem, sobretudo o viúvo, poucas vezes esteve tão vulnerável. Para driblar a melancolia da saudade, a família procura ficar com ele quase todas as noites, com os filhos se revezando para pernoitar no duplex de São Bernardo do Campo (SP).
— É no fim do dia que ele sente mais falta. Dona Marisa era quem garantia sua estabilidade emocional, impunha limites, não deixava trabalhar nem viajar tanto. Então agora ele não dorme mais sozinho em casa — conta um amigo da família.
Entre o ceticismo e o palanque
A forma abrupta como Lula perdeu a mulher com quem fora casado por 43 anos — apenas 10 dias após o AVC — o fez redobrar os cuidados com a saúde. Levanta cedo, faz exercícios, prioriza alimentação saudável e reduziu drasticamente o consumo de álcool, além de manter distância das cigarrilhas, hábito abandonado após o câncer na garganta descoberto e tratado em 2011.
A carga de trabalho, contudo, aumentou. O ex-presidente passa o dia em reuniões no Instituto Lula, onde também faz as refeições, e só volta para casa ao anoitecer. No final do ano passado, liderou uma caravana viajando de ônibus por Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Estados do Nordeste, passando por 42 cidades. Na próxima sexta-feira, embarca para a Etiópia, onde participa de um encontro da União Africana, organização internacional que reúne 54 nações, e no final de fevereiro percorre o Rio Grande do Sul.
— A gente nunca está bem quando está sendo processado. Mas Lula está alegre, bem de saúde. E está otimista — diz o ex-deputado Devanir Ribeiro, amigo do ex-presidente desde os anos 1970, quando foram colegas no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.
O otimismo citado por Devanir é reiterado por Lula em cada encontro político que promove. Reitera sua confiança no trabalho dos advogados, reafirma a própria inocência e abate no nascedouro qualquer projeção pessimista dos interlocutores. A poucos amigos, porém, Lula tem dito que não acredita numa absolvição. Na decisão de 12 de julho de 2017, Moro vai além do suborno de R$ 2,2 milhões pagos ao petista na forma de aquisição e reforma do triplex no Guarujá (SP). O juiz sustenta que a prática criminosa do ex-presidente envolveu a destinação de R$ 16 milhões a agentes políticos do PT, num "esquema criminoso mais amplo no qual o pagamento de propinas havia se tornado rotina".
"O condenado recebeu vantagem indevida em decorrência do cargo de Presidente da República, ou seja, de mandatário maior. A responsabilidade de um Presidente da República é enorme e, por conseguinte, também a sua culpabilidade quando pratica crimes", escreveu o magistrado na 215ª página da decisão.
Sem entrar em pormenores do processo, discutir os fundamentos da sentença de Moro e tampouco contestar tecnicamente as evidências coletadas pela acusação — tarefa que delega à sua defesa —, o ex-presidente sustenta que, em meio a tamanha polarização política vigente no país, o Judiciário adotou uma postura tão anti-PT, que não teria como justificar uma decisão que não seja condenatória.
O ceticismo contrasta com a obstinação em ser candidato. A cada evento, Lula faz questão de passar primeiro a palavra a um de seus advogados. Após uma rápida explicação sobre o processo, o final é sempre taxativo: "Não existe possibilidade de Lula não ser candidato". A partir daí, o petista assume o microfone e, num discurso carregado de emoção, exercita o dom de encantador de multidões, como fez no palco do Oi Casa Grande.
— Eles estão brigando com um cidadão que não queria briga, com um cara que saiu da Presidência e achou que poderia passar a viver tranquilamente. Continuo sendo o Lulinha Paz e Amor, mas eles têm de saber que minha vontade de brigar continua sendo a mesma. A todos vocês que tiveram a ideia de convocar esse ato, independentemente de que partido sejam, quero dizer: eu tô no jogo. O "véinho" sabe jogar e vai lutar democraticamente.
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Julgamento de Lula
Condenado em primeira instância pelo juiz Sergio Moro a nove anos e seis meses de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro, o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva terá sua apelação julgada pelo TRF4, em Porto Alegre, nesta quarta-feira (24). A condenação é referente à denúncia na 13ª Vara Federal de Curitiba por supostamente ter recebido propina da construtora OAS em troca de favorecimentos à empreiteira em contratos na Petrobras. O suborno, no total de R$ 3,7 milhões, teria sido pago com a aquisição e reforma de um triplex no Guarujá (SP) e com o custeio do armazenamento de seu acervo presidencial.
Os advogados pedem a absolvição do petista, alegando que a condução do processo por Moro foi "parcial e facciosa". Já o MPF recorreu da decisão de Moro por entender que o ex-presidente deve ser punido por três atos de corrupção em concurso material — instrumento jurídico pelo qual as penas são somadas —, e não apenas por um crime de corrupção e um de lavagem de dinheiro como entendeu o juiz na sentença.
O ex-presidente será julgado pela 8ª Turma do TRF4, formada pelos desembargadores João Pedro Gebran Neto, relator do processo, Leandro Paulsen, presidente da Turma e revisor, e Victor Luiz dos Santos Laus. Estão previstas manifestações favoráveis e contrárias ao ex-presidente em Porto Alegre, e foi montado um esquema de segurança especial. Seja qual for o resultado do julgamento — condenação ou absolvição —, o processo não se encerra nesta quarta-feira, já que cabem recursos ao próprio TRF4.
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