Encampada pelo candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL), a proposta de dar imunidade a policiais militares (PMs) que matem em serviço encontra resistência até mesmo entre seus apoiadores. Se eleito, o capitão reformado do Exército pretende empregar o princípio da legítima defesa de imediato, sem a abertura de investigação de mortes causadas por agentes de segurança.
Em seu plano de governo, o candidato sustenta que PMs em atividade precisam de “retaguarda jurídica” por meio de “excludente de ilicitude”, termo técnico ao afastamento de punição. Apesar de não esclarecer como colocaria a medida em prática, ele a defende em agendas públicas.
Na semana passada, em visita à sede do Batalhão de Operações Especiais (Bope) do Rio, afirmou que PMs precisam ser “condecorados” em vez de “processados” após missões. Em novembro de 2017, durante palestra em universidade mineira, argumentou:
— O policial agiu, trabalhou, houve algo de errado? Responde, mas não tem punição. Alguns falam: “você quer dar autorização para o policial matar?”. Quero, sim.
Pela lei, a Polícia Civil abre inquérito sempre que ocorre uma morte causada por PM, e o investigado pode recorrer a excludente de ilicitude alegando legítima defesa. Se o Judiciário entender que a circunstância se aplica, o agente não é punido. Para tanto, o policial deve ter usado “moderadamente” dos meios necessários para combater “injusta agressão”.
Acho que ele não quer que se instaure, de cara, procedimento. Mas, penalmente, não vejo o que poderia avançar. Não se pode dar salvo-conduto para sair matando.
ROBSON RUBIM
Delegado da Polícia Federal
— Um policial que dá dois tiros para neutralizar um ataque não precisa dar um tiro de misericórdia na cabeça do indivíduo. Seria um excesso. Essa ideia de ampliar o limite é inadequada. Viveríamos período do descontrole – avalia o coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo e ex-secretário nacional de Segurança Pública, José Vicente da Silva Filho.
Eleitor de Bolsonaro, ele diz que o uso adequado da força policial é uma “grande preocupação” em qualquer país democrático. Controverso, o plano enfrenta ressalvas dentro da própria campanha do presidenciável.
O cientista político Antônio Flávio Testa, coordenador de um subgrupo que discute projetos do candidato, admitiu recentemente ser necessário “algum tipo de investigação”.
Bolsonarista declarado, o delegado da Polícia Federal (PF) Robson Rubim contemporiza. Admite que a excludente já está prevista em lei e seria impossível “sair matando sem dar explicação alguma”. Pela ausência de clareza no projeto, avalia ser uma “fala midiática”:
— Acho que ele não quer que se instaure, de cara, procedimento. Mas, penalmente, não vejo o que poderia avançar. Não se pode dar salvo-conduto para sair matando.
Projetos da família Bolsonaro na Câmara
Na Câmara, Bolsonaro e o filho Eduardo (PSL), deputado reeleito, são autores de ao menos três projetos de lei que relativizam a punição por mortes cometidas por policiais. Um deles, de 2014, suprime a expressão “uso moderado de meios necessários” para qualificar a legítima defesa. Outro, de 2017, sugere que a excludente de ilicitude seja “prontamente” aplicada.
— Esses projetos, em conjunto, podem levar a excessos que ficariam impunes em determinados casos – analisa o criminalista André Luís Callegari, doutor em Direito Penal.
Interlocutor de Bolsonaro no Estado, o policial federal Ubiratan Sanderson (PSL), eleito para a Câmara, aposta que esse será um dos primeiros planos do pacote de segurança levado ao Congresso em caso de vitória. Também ele reconhece que a ideia precisa de debate para “ficar mais esclarecida”.
Para Sanderson, a sociedade sempre vê o policial com um “espírito arbitrário”. Devido aos procedimentos atuais, considera que o agente está em “maus lençóis” se ferir ou matar um criminoso para “defender as pessoas”. O futuro parlamentar aponta que um caminho para proteger o policial seria a assinatura de termo circunstanciado quando ocorrer morte em “claro enfrentamento” e “sem qualquer abuso”. Assim, investigação seria dispensada:
— Não é um salvo-conduto para matar. Pelo contrário. Mas, hoje, o policial pensa duas vezes na hora de um confronto porque sabe que será penalizado. Foram normas criadas para defender criminoso.
PGR e OAB criticam a iniciativa
Se eleito, Jair Bolsonaro (PSL) irá enfrentar a partir de 2019 oposições à intenção de conceder imunidade aos policiais que matam. Criticada por Procuradoria-Geral da República (PGR) e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a proposta esbarra ainda no receio de especialistas, pesquisadores e autoridades de que se chancele a violência institucional.
A subprocuradora-geral da República, Luiza Frischeisen, afirma que investigação é indispensável para que se apure se houve legítima defesa ou intenção, o que contribui para proteger os próprios policiais.
— Esses projetos querem presunção de legitimidade no ato do policial que atira e mata ou fere alguém, o que atenta contra a investigação dos fatos. Mesmo quando você tem excludente, tem de se investigar para apurar o que aconteceu. No Brasil, existe garantia constitucional, tanto à vítima quanto ao acusado, de que haverá julgamento – sublinha Luiza, coordenadora da Câmara Criminal da PGR.
Presidente nacional da OAB, Claudio Lamachia classifica a ideia como “retrocesso” e diz que a abertura de inquérito oportuniza ao policial demonstrar que agiu em legítima defesa, além de coibir eventuais abusos:
— Investigação evita eventuais abusos e legitima a ação dos policiais que agem corretamente.
Número de mortes por policiais disparou
Em média, 14 pessoas são mortas pela polícia por dia no país. No ano passado, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a quantidade de mortes por policiais disparou. Foram 5.144 – aumento de 20% na comparação com o ano anterior. O levantamento indica que número de agentes de segurança mortos recuou 5% no período.
O criminalista Celso Vilardi, professor da Fundação Getulio Vargas em São Paulo (FGV-SP), trata o projeto como “impossível”. Pelo seu entendimento, o Código Penal já assegura que qualquer policial ou cidadão que reagir “moderadamente” a uma ameaça não será penalizado:
— Qualquer modificação na legítima defesa seria considerada inconstitucional. Não se pode dar ao policial uma licença para matar sem ser punido.
Dois casos da legislação atual
Pelas leis em vigor, em toda morte cometida por policiais é aberto inquérito para apurar tanto possível legítima defesa quanto intenção criminosa.
Após homicídio durante abordagem, três PMs viram réus
- Trio de brigadianos virou réu pela morte de um jovem de 18 anos na Capital. Ronaldo de Lima foi morto com tiro pelas costas em 3 de setembro de 2015, na Vila Buraco Quente, no Morro Santa Tereza, após abordagem.
- Na época, foi aberto inquérito e a Polícia Civil concluiu que os PMs haviam agido em legítima defesa. O Ministério Público (MP) discordou.
-Os brigadianos alegavam que o jovem estava armado e teria disparado. Moradores disseram ter ouvido apenas um tiro. Houve revolta e queima de ônibus no morro em protesto.
-Após a investigação, a perícia atestou que o PM José Cecílio Martins da Rosa, o Serginho, autor do tiro que matou Lima, trocou o tambor de um revólver 38, apresentado pelos PMs como encontrado com o jovem, pelo de sua própria arma, de igual calibre.
-A Justiça aceitou denúncia e tornou Serginho réu por homicídio qualificado e fraude processual. Os outros PMs, Alexandre Puntel e Thiago Costa Silva, respondem por falso testemunho, por mentir no inquérito – disseram ter ouvido dois tiros, um feito pelo colega e outro pela vítima. A defesa não foi localizada ontem para comentar.
Brigadiano salva casal ameaçado por homem armado em Porto Alegre
-Ao menos três câmeras de segurança registraram o momento em que um policial militar à paisana matou um homem que tentava roubar um casal no bairro Mont´Serrat, em Porto Alegre, no dia 24 de julho deste ano.
-As imagens mostram quando o carro do casal é fechado pelo automóvel dos assaltantes. Um deles desce pela porta traseira e aponta a arma para a motorista.
-O soldado da Brigada Militar surge, do outro lado da via, entre carros estacionados. Segundo a titular da 8ª Delegacia de Polícia, Vandi Lemos, antes de atirar, ele deu ordem para o ladrão parar, que não foi atendida.
-Os comparsas fugiram. Em razão da morte, foi aberto inquérito, mas a delegada adiantou que as imagens comprovavam a ação do PM em legítima defesa das vítimas.