A Polícia Federal criou um canal para denúncias que envolvam trabalho semelhante à escravidão na Serra. Quem tiver informações sobre casos como o descoberto em Bento Gonçalves na semana passada pode ligar para 54 3213.9019. A polícia segue a investigação referente aos 207 trabalhadores resgatados em operação no último dia 22. O inquérito ainda está em fase inicial e tem o prazo legal de um mês para ser concluído, contando a partir da data do resgate dos homens, a maioria baianos, em uma pousada no bairro Borgo. Contudo, o delegado da Polícia Federal de Caxias do Sul e responsável pela investigação, Adriano Medeiros do Amaral, acredita que será necessário solicitar prorrogação para conclusão do inquérito devido a quantidade de documentos e de envolvidos.
— Muito provavelmente será necessário solicitar prorrogação do prazo para enviar o inquérito ao Judiciário porque são muitos elementos para serem trazidos nos autos.
Ainda segundo o delegado, os trabalhadores resgatados foram ouvidos pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) na última sexta-feira (24) para ajudar no andamento do processo:
— Devido ao número excessivo de trabalhadores foi deixado que o pessoal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) fizesse as oitivas deles porque era preciso fazer a rescisão e efetuar o pagamento. Agora, estamos em uma coleta de informações e temos que receber as cópias de todos os depoimentos para, aí sim, organizar o andamento do inquérito e ver a participação de cada envolvido. Vamos pegar os contratos das empresas prestadoras de serviço, e estamos organizando ainda porque é um número grande, tem muitos envolvidos no caso — afirma o delegado.
Em entrevista ao programa Atualidade da Rádio Gaúcha na manha desta terça-feira (28), o delegado afirmou que o trabalho de coleta de informações é realizado em conjunto entre a Polícia Federal, Ministério do Trabalho e Emprego e Ministério Público do Trabalho (MPT). Questionado sobre o fato do administrador da empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda de Bento Gonçalves ter sido solto na quinta-feira (23), um dia após a operação, depois de pagar fiança no valor de R$ 39.060,00, o delegado explicou que representou pelo pedido de prisão preventiva.
— O responsável pela contratação de mão de obra às vinícolas foi preso em flagrante e, naquele momento, optou por permanecer em silêncio. Na hora da lavratura do flagrante eu representei pela prisão preventiva dele e ele foi recolhido ao presídio e no dia seguinte a pedido da defesa dele, o Judiciário entendeu que ele poderia ser solto porque ele não tinha antecedentes criminais e tinha endereço fixo, e aí o Judiciário entendeu que ele pode responder o processo em liberdade.
Se for comprovado o trabalho similar à escravidão, o delegado ressalta que o suspeito poderá ser condenado a pena de dois a oitos anos de prisão. Sobre as suspeitas de que policiais militares acobertaram o caso, inclusive, com prestação de serviços particulares para os empresários da Serra, o delegado ressalta que todos os fatos e envolvidos serão investigados. Ainda sobre a possibilidade de uma rede atuar neste tipo de crime em todo o país, ele aponta que não descarta e esse aspecto será analisado e levado em conta durante a investigação:
— Todas as participações no fato serão apuradas, mas estamos no estágio inicial. Agora temos que fazer toda a investigação, chamar todos os envolvidos, falar com as empresas, ver os contratos que firmaram com essa prestadora de serviços, ver a questão de hospedagem e apurar todos os fatos. Não temos como responsabilizar ninguém de antemão. Vamos ver a origem desses trabalhadores, quem os cooptava.
Ouça a entrevista completa:
Relembre o caso
O caso dos trabalhadores em situação análoga à escravidão foi denunciado após seis homens conseguirem fugir do local onde eram mantidos e buscar contato com a Polícia Rodoviária Federal, que prestou auxílio e deu início à operação. Um dos denunciantes já havia gravado vídeo com um celular e publicado em uma rede social reclamando das condições de trabalho. Ele relata que foi agredido pelos supostos empregadores por isso. O homem contou à polícia que aproveitou quando os agressores foram atender uma ligação e pulou de uma janela, correndo até um mato próximo do local onde estava. Ele e mais dois trabalhadores, que estavam com ele, aguardaram até as 3h da quarta-feira (22) para sair e pedir ajuda.
Ainda na quarta, uma operação conjunta de PRF, Polícia Federal (PF) e MTE flagrou 180 homens no alojamento, em situação precária de hospedagem, higiene e alimentação. À equipe, trabalhadores relataram que sofriam violência verbal, física, ameaças de morte e eram alimentados com comida estragada. Após o primeiro flagrante, outros 27 homens foram resgatados, na quinta, e encaminhados ao ginásio.
O aliciador da mão de obra e administrador da empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, Pedro Augusto Oliveira de Santana, chegou a ser preso ainda na quarta, mas foi liberado no dia seguinte após pagar fiança de R$ 39.060. Natural de Valente (BA), o empresário está sendo investigado. Ele trabalharia na região, com prestação de serviço, há pelo menos 10 anos, conforme o MTE.
Os homens resgatados atuavam, principalmente, na colheita da uva, em propriedades rurais do município. As três vinícolas — Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton —, citadas pelos trabalhadores e que contrataram o serviço terceirizado da prestadora, afirmaram em notas não ter conhecimento da situação em que os homens eram expostos até a operação, e que irão colaborar com a investigação. As investigações seguem com o MTE, Ministério Público do Trabalho (MPT) e Polícia Federal (PF).
Além de vinícolas, 23 proprietários rurais contratavam serviços de trabalhadores resgatados em Bento. Os nomes dos 23 não foram divulgados. A investigação ainda aponta que os trabalhadores atuavam na carga e descarga da uva em vinícolas e na colheita da uva nas propriedades rurais.
O que dizem as vinícolas?
Por meio de assessorias de imprensa, as três empresas publicaram comunicados.
O que diz a Aurora:
"NOTA OFICIAL
Em respeito aos seus associados, colaboradores, clientes, imprensa e parceiros, a Vinícola Aurora vem à público para reforçar que não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão e se solidariza com os trabalhadores contratados pela terceirizada Oliveira & Santana.
As vítimas são funcionários da Oliveira & Santana, empresa que prestava serviços às vinícolas, produtores rurais e frigoríficos da região.
A Aurora já se colocou à disposição das autoridades para quaisquer esclarecimentos e está prestando apoio às vítimas. A companhia também está trabalhando em conjunto com o Ministério Público Federal e com o Ministério do Trabalho para equalizar a situação em busca de reparo aos trabalhadores da Oliveira & Santana.
A vinícola está tomando as medidas cabíveis e reitera seu compromisso com todos os direitos humanos e trabalhistas, assim como sempre fez em seus 92 anos. Ratifica ainda que permanece cumprindo com suas obrigações legais e com a sua responsabilidade também perante ao valor rescisório a cada trabalhador contratado pela Oliveira & Santana.
A Aurora conta com 540 funcionários, todos devidamente registrados e obedecendo a legislação trabalhista. Porém, na safra da uva, dentro de um período de cerca de 60 dias, entre janeiro e março, a empresa depende de um grande número de trabalhadores, se fazendo necessária a contração temporária para o setor de carga e descarga da fruta, devido à escassez de mão de obra na região.
Quanto à empresa terceirizada, cabe esclarecer que a Aurora pagava à Oliveira & Santana um valor acima de R$ 6,5 mil/mês por trabalhador, acrescidos de eventuais horas extras prestadas. A terceirizada era a responsável pelo pagamento e pelos devidos descontos tributários instituídos em lei. A Aurora também exigia os contratos de trabalhos da equipe que era alocada na empresa.
Todo e qualquer prestador de serviço da Aurora, da mesma forma que os funcionários, recebe alimentação de qualidade durante o turno de trabalho, como café da manhã, almoço e janta, sem distinções.
A vinícola também oferecia condições dignas de trabalho no horário de expediente e os gestores responsáveis desconheciam a moradia desumana em que os safristas eram acomodados pela Oliveira & Santana após o período de trabalho.
Por fim, ratificando seu compromisso social, a Aurora se compromete em reforçar sua política de contratações e revisar os procedimentos quanto à terceiros para que casos isolados como este nunca mais voltem a acontecer."
O que diz a Salton:
"Comunicado Salton
Em respeito aos seus colaboradores, clientes, acionistas, fornecedores e toda a sociedade, a Salton manifesta profundo lamento e total repúdio a qualquer ato de violação dos direitos humanos e trabalho sob condições precárias e análogas à escravidão.
A empresa atua há mais de 100 anos guiada pelo rigoroso cumprimento das leis e pelo respeito aos direitos humanos, sociais e trabalhistas, possuindo diretrizes e processos formalizados para a contratação de fornecedores e prestadores de serviços, com práticas de gestão e acompanhamento do cumprimento da legislação, em especial em questões trabalhistas e sociais.
Nenhum dos trabalhadores resgatados era empregado da Salton e sim da prestadora de serviços Fênix, que atua na região da Serra Gaúcha, com sede em Bento Gonçalves há mais de 10 anos, fornecendo serviços não somente para empresas do setor vitivinícola, mas também para produtores rurais e empresas de outros setores, como aviários e frigoríficos. O resgate dos trabalhadores não ocorreu na Salton.
Prezando pela transparência de suas ações, a Salton ressalta que não possui qualquer atividade de colheita em Bento Gonçalves que demande mão-de-obra terceirizada. O contrato de prestação de serviços com a Fênix foi firmado unicamente com objeto de carga e descarga de caminhões em Bento Gonçalves.
A Salton promoveu a averiguação técnica para cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço e respeitou a integralidade das melhores práticas trabalhistas junto a estes trabalhadores.
A Salton possui uma estrutura de ouvidoria junto ao seu RH e canal de denúncia externo, que garante o anonimato do denunciante e está amplamente disponível nas dependências da empresa, tanto para colaboradores quanto para fornecedores. Não houve nenhuma denúncia sobre o tema.
A Salton tomará as medidas cabíveis, com toda a seriedade e respeito que a situação exige e trabalhará prontamente, não apenas para coibir acontecimentos com fornecedores e prestadores de serviços, mas também para promover a conscientização das melhores práticas sociais e trabalhistas. A empresa acredita na sustentabilidade como premissa de negócio e é signatária do Pacto Global da ONU, realizando diversos projetos para reforçar a responsabilidade social da empresa e seu compromisso como empresa cidadã.
A Salton ressalta que adotará medidas austeras para que os fatos sejam devidamente esclarecidos, de forma transparente e colaborativa junto às autoridades públicas.
Família Salton"
O que diz a Cooperativa Garibaldi:
"Nota à imprensa
Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa sob investigação no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada.
Com relação à empresa denunciada, o contrato era de prestação de serviço de descarregamento dos caminhões e seguia todas as exigências contidas na legislação vigente. O mesmo foi encerrado.
A Cooperativa aguarda a apuração dos fatos, com os devidos esclarecimentos, para que sejam tomadas as providências cabíveis, deles decorrentes.
Somente após a elucidação desse detalhamento poderá manifestar-se a respeito.
Desde já, no entanto, reitera seu compromisso com o respeito aos direitos – tanto humanos quanto trabalhistas – e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos."