CORREÇÃO: O nome da empresa que mantinha contratos com os trabalhadores baianos resgatados em operação contra trabalho análogo à escravidão em Bento Gonçalves é Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, e não Fênix Serviços de Apoio Administrativo. A informação errada foi informada pelo advogado Rafael Dorneles da Silva, que se diz defensor da empresa investigada e ficou publicada do dia 23/02/2022 até 16h de 27/02/2022. O texto já foi corrigido.
Era 20h de terça-feira (21), quando Marcelo* viu em uma ligação a oportunidade de fugir. Ele estava sendo agredido, após divulgar, em um grupo de rede social, um vídeo relatando que era obrigado a trabalhar com roupa molhada e que era alimentado com comida estragada. A situação, caracterizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) como análoga à escravidão, ocorria desde o início do mês em Bento Gonçalves.
Marcelo* aproveitou que os homens que o agrediam foram atender uma ligação e pulou de uma janela, correndo até um mato próximo do local onde estava. Ele e mais dois trabalhadores, que estavam com ele, aguardaram até 3h da manhã desta quarta (22) para sair pedindo ajuda. Eles conseguiram, através de um telefone que ficou escondido em um dos trabalhadores, entrar em contato com a família, em Salvador (BA), receber uma transferência bancária para conseguir ir até a rodoviária pegar um ônibus. Pararam em Caxias do Sul, onde foram ajudados pela Polícia Rodoviária Federal (PRF).
O trabalhador baiano veio para a Serra gaúcha atrás de uma oportunidade de trabalho e de sustento que parecia boa, com salário de R$ 3 mil, com alimentação e alojamento inclusa.
— Ele (o aliciador que trouxe os trabalhadores) enviou um link geral, que caía em qualquer site, em qualquer aplicativo. Aí um colega meu, pelo fato de eu, todos os dias, pedir a ele um trabalho, ele viu esse link e falou. Eu disse para ele mandar para mim, de primeira eu vi R$ 3 mil limpo, com comida, café da manhã, alojamento, sem gasto nenhum, tudo na conta deles. No dia que a gente veio ele (o aliciador) fez aquela palestra, uma reunião mentirosa, fazendo uma fantasia, fez a nossa mente — relata Marcelo*, que viajou por quatro dias e meio até Bento Gonçalves.
Ele conta que, ainda na estrada, começou a notar que a realidade não era como prometida. O gasto com comida nas paradas - em lugares caros, segundo ele - já estava sendo descontado do salário. A promessa de banho quente e descanso ao chegar também não foi concretizada, Marcelo* afirma que o banho era em uma torneira gelada e que foram acordados duas horas antes do combinado para ir para o trabalho.
— Tinham dito que íamos acordar 6h da manhã para trabalhar, mas não aconteceu nada disso. Às quatro horas nós estávamos sendo acordados para ir trabalhar. Logo no primeiro café da manhã faltou pão e café para trabalhadores, não só na roça que eu trabalho — complementa.
O trabalhador diz que conseguiu relevar na primeira semana, achando que melhoraria, mas ao longo das semanas seguintes, foi ficando revoltado com a situação. Foi quando decidiu gravar o vídeo, que acabou sendo motivo de violência e de ameaça de morte.
— Tomei cadeirada, spray de pimenta, estou com os dentes moles. Eu escutei eles falando que um carro estava vindo para levar para me matarem. O tempo dos escravos eu não vivi, acho que nem minha bisavó viveu. Hoje vai existir escravo de novo? Não vai. O que depender de mim, não vai, eu vou abrir minha boca, eu vou falar que 'tá' errado — defende Marcelo*.
Enquanto o trabalhador fugia, o grupo que veio com ele era ameaçado para falar seu paradeiro.
— Eles falavam 'você vai ter que dar (o número do telefone) ou você vai morrer. Todos que vieram com ele vão ter que morrer' — conta Tiago*, que fugiu na madrugada desta quarta, para Porto Alegre, com medo da morte.
Tiago* conta que o grupo era do mesmo bairro e alguns da mesma família. Além das péssimas condições de alojamento, eles trabalhavam das 5h às 20h, sem pausa, com direito de folga apenas aos sábados — entretanto, eram obrigados a assinar no ponto que folgavam também aos domingos.
— Eles nos acordavam gritando 'bora seu demônio, dormiu a noite inteira e 'tá com preguiça?'. Era um bocado de gente num quarto só, um abafamento, não tinha ventilador, não tinha TV, comida ruim. Uns dormiam no chão, porque o quarto estava cheio — diz Tiago*.
Do resgate
O agente da PRF em Porto Alegre, Douglas Paveck, recebeu a informação dos colegas de Caxias de que três homens estariam na rodoviária da Capital, fugindo de uma situação que poderia ter características de trabalho escravo.
— Eu fui na rodoviária para tentar localizá-los, consegui contato com eles através de um número que me passaram. Eles realmente estavam muito, muito assustados, tinha um deles ali que não queria fazer nenhum tipo de denúncia, que estava com muito medo. Eles não tinham almoçado, não tinham tomado café da manhã, não tinham jantado. Um deles estava machucado, este me informou que tinha sido espancado na pousada — conta Paveck.
Após os homens se alimentarem, eles retornaram com a PRF para Caxias, para dar início a Operação.
— A gente contou muito com a colaboração deles (trabalhadores) a todo momento e, mesmo com muito medo, com muito receio, porque são pessoas muito humildes e simples, mesmo assim tiveram esse senso de responsabilidade de não permitir que outras pessoas passassem por aquele momento que eles estavam passando — relata o agente.
A operação
Além de Marcelo* e Tiago* outros 150 trabalhadores foram encontrados em situação análoga à escravidão na noite desta quarta. A operação contou com agentes da PRF, Polícia Federal e MTE. Todos os baianos estavam com vínculo empregatício com uma prestadora de serviço, que atua na colheita da uva e no abate de aves.
Até o momento, a reportagem não conseguiu contato com os donos da prestadora de serviço e da pousada em que os trabalhadores estavam.
*Para preservar a identidade dos trabalhadores, foram utilizados nomes fictícios.
Colheita da uva
Na quinta-feira (23), a reportagem apurou que os trabalhadores eram ligados à empresa terceirizada Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, que fornecia a mão de obra para produtores para a colheita da uva e também para três vinícolas, para atuar no descarregamento de uva pós-colheita. As vinícolas seriam Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi.
Por meio de assessorias de imprensa, as três empresas citadas na operação se manifestaram.
O que diz a Aurora:
"NOTA À IMPRENSA
A Vinícola Aurora se solidariza com os trabalhadores contratados pela empresa terceirizada e reforça que não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão.
No período sazonal, como a safra da uva, a empresa contrata trabalhadores terceirizados, devido à escassez de mão-de-obra na região. Com isso, cabe destacar que Aurora repassa à empresa terceirizada um valor acima de R$ 6,5 mil/mês por trabalhador, acrescidos de eventuais horas extras prestadas.
Além disso, todo e qualquer prestador de serviço recebe alimentação de qualidade durante o turno de trabalho, como café da manhã, almoço e janta.
A empresa informa também que todos os prestadores de serviço recebem treinamentos previstos na legislação trabalhista e que não há distinção de tratamento entre os funcionários da empresa e trabalhadores contratados.
A vinícola reforça que exige das empresas contratadas toda documentação prevista na legislação trabalhista.
A Aurora se coloca à disposição das autoridades para quaisquer esclarecimentos."
O que diz a Salton:
"A empresa não possui produção própria de uvas na Serra Gaúcha, salvo poucos vinhedos situados junto a sua estrutura fabril que são manejados por equipe própria. Durante o período de safra, a empresa recorre à contratação de mão de obra temporária. Estes temporários permanecem em residências da própria empresa, atendendo a todos os critérios legais e de condições de habitação. A empresa ainda recorre, pontualmente, à terceirização de serviços para descarga. Neste caso, o vínculo empregatício se dá através da empresa contratada com o objetivo de fornecimento de mão de obra. No ato da contratação é formalizada a responsabilidade inerente a cada parte. Neste formato, são 7 pessoas terceirizadas por esta empresa em cada um dos dois turnos. Estas pessoas atuam exclusivamente no descarregamento de cargas. Através da imprensa, a empresa tomou conhecimento das práticas e condições de trabalho oferecidas aos colaboradores deste prestador de serviço e prontamente tomou as medidas cabíveis em relação ao contrato estabelecido. A Salton não compactua com estas práticas e se coloca à disposição dos órgãos competentes para colaborar com o processo."
O que diz a Cooperativa Garibaldi:
"Nota à imprensa
Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa Oliveira & Santana no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada.
Informa, ainda, que mantinha contrato com empresa diversa desta citada pela mídia.
Com relação à empresa denunciada, o contrato era de prestação de serviço de descarregamento dos caminhões e seguia todas as exigências contidas na legislação vigente. O mesmo foi encerrado.
A Cooperativa aguarda a apuração dos fatos, com os devidos esclarecimentos, para que sejam tomadas as providências cabíveis, deles decorrentes.
Somente após a elucidação desse detalhamento poderá manifestar-se a respeito.
Desde já, no entanto, reitera seu compromisso com o respeito aos direitos – tanto humanos quanto trabalhistas – e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos."