Autoridades de três instituições receberam relatos de que policiais militares acobertavam e até se envolviam em coações a trabalhadores submetidos a trabalho análogo à escravidão na colheita da uva. Um grupo de 207 safristas que atuava nessa atividade em Bento Gonçalves, na Serra, submetido a condições degradantes num alojamento, foi encontrado por uma força-tarefa da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Ministério do Trabalho, PF e Ministério Público do Trabalho (MPT) na semana passada, após alguns deles fugirem de um alojamento de onde eram proibidos de sair. O homem que contratou os empregados para a safra e os mantinha em locais precários chegou a ser preso em flagrante, mas foi libertado após pagar fiança.
Dos 207 safristas, 198 são baianos. Eles foram contratados por Pedro Oliveira Santana, um empresário, também baiano, radicado em Bento Gonçalves, que faz intermediação de mão de obra para diversas atividades na serra gaúcha. Nos depoimentos prestados às autoridades, alguns trabalhadores que fugiram disseram ter sido espancados e ameaçados de morte por PMs. Conforme os relatos, os policiais teriam um acordo com o proprietário do alojamento, pelo qual eram chamados para coagir e reprimir os safristas, em casos de brigas ou de reclamação.
A reportagem teve acesso a alguns depoimentos. Em um deles, um homem de 24 anos, de Salvador (BA), diz que foi contratado mediante promessa de salário de R$ 3 mil líquidos, banho quente, 10 horas de trabalho por dia e folgas nos fins de semana. Ele afirma que o banho era frio, que trabalhava até 12 horas por dia, que nunca recebeu o dinheiro combinado e que tinha de pagar por água, talheres e utensílios de higiene pessoal. Fala ainda que, ao divulgarem um vídeo no qual reclamavam das condições de trabalho, ele e outros safristas foram espancados por seguranças do alojamento onde estavam abrigados, em Bento Gonçalves.
— Fui agredido com uma cadeira de ferro e ameaçado de morte — relata, acrescentando que, entre esses vigias, estariam policiais militares.
Outro depoimento, feito por um safrista de 23 anos (que também fugiu do alojamento), dá nome aos supostos policiais. Ele diz que três trabalhadores foram agredidos por seguranças do alojamento porque reclamaram das condições. O suposto PM, que era identificado pelos trabalhadores do local como "sargento", teria dito que "quem reclamasse ou filmasse as condições da pousada seria morto". De acordo com o depoimento do safrista resgatado pela PF, outros que reclamaram já teriam sido assassinados.
Os depoimentos têm sido encaminhados para a Polícia Federal e a Brigada Militar. Nos relatos, são mencionados dois soldados, mas o número pode ser maior, já que há outros indícios de que policiais fariam serviço particular para empresários da região serrana.
A reportagem conversou com safristas que abandonaram o alojamento e inclusive moram na rua, por não terem onde ficar. Eles reforçam que espancamentos e ameaças seriam feitos por policiais. Inclusive, alguns seriam chamados mesmo estando de serviço, uniformizados, para "resolver" problemas relativos a queixas ou brigas entre os trabalhadores. Alguns desses PMs teriam usado de armas de choque e cassetetes para agredir os queixosos.
Fiscais, policiais e transeuntes que acolheram três safristas que fugiram descalços do alojamento (após pularem uma janela) e percorreram quilômetros na noite contam que os trabalhadores imploraram para que não fosse acionada a BM. Tinham receio de represália por parte dos policiais.
Alguns safristas costumavam pedir comida na região onde fica a pousada. Moradores davam refeições — um deles comenta que viu ferimentos nas costas dos trabalhadores, causados pelas surras que levavam, e descreve ter ouvido de muitos o pedido de "ajuda, eles vão me matar".
A Corregedoria da BM abriu investigação sobre os episódios, que também são averiguados pela Polícia Federal.