O resgate de 180 homens em situação análoga à escravidão, em Bento Gonçalves, é o maior registrado na história do Estado. A informação do recorde e a caracterização do trabalho semelhante ao escravo foram confirmadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) de Caxias do Sul, o qual atua em conjunto com a Polícia Rodoviária Federal (PRF) e Polícia Federal (PF). O resgate ocorreu após operação realizada na noite de quarta-feira (22), quando houve o flagrante em uma pousada na Rua Fortunato João Rizzardo, bairro Borgo.
A situação foi denunciada após seis homens conseguirem fugir e buscarem a PRF. Três foram para Porto Alegre e três para Caxias do Sul. O grupo de trabalhadores chegou de Salvador (BA) à Serra gaúcha no dia 2 de fevereiro e, desde então, trabalhava, principalmente, na vindima das 5h às 20h, com folga apenas no sábado.
Além disso, conforme os relatos dos trabalhadores à PRF, eles viviam em situação inadequada de alojamento e de higiene e eram alimentados com comida estragada. Tanto a instalação quanto a alimentação faziam parte da promessa de trabalho que receberam da empresa que prestava serviço para produtores e grandes vinícolas da região. Os trabalhadores também eram tratados com violência, segundo os relatos entregues ao MTE.
Segundo o secretário de Assistência Social de Bento, Eduardo Virissimo, até as 17h10min desta quinta (23), 180 pessoas já tinham sido acolhidas no Ginásio Municipal Darcy Pozza. A expectativa é de receber 215, já que além dos trabalhadores resgatados outros moravam na pousada que foi interditada, portanto, ficaram sem local para se abrigarem. No ginásio todos vão receber abrigo, local para dormir, acesso à higiene, alimentação e assistência médica.
— Temos a estrutura para dar o melhor acolhimento possível a esses homens — garante Virissimo.
O proprietário da empresa Oliveira & Santana, responsável por aliciar a mão de obra na Bahia para a colheita de uva e abate de frangos, chegou a ser preso durante a operação. O homem, 45 anos, de Valente (BA), foi liberado após pagar a fiança, no valor de R$ 39.060. Já as três vinícolas - Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton -, citadas pelos trabalhadores e que contrataram o serviço terceirizado da prestadora, afirmaram em nota não ter conhecimento da situação em que os homens eram expostos até a operação e que irão colaborar com a investigação.
Segundo o gerente do MTE em Caxias, Vanius Corte, funcionários vindos de Porto Alegre reforçam a equipe local para calcular quanto é devido a cada trabalhador. A ideia é que essa etapa seja concluída o mais rápido possível. O passo seguinte será notificar o empregador que terá de fazer os pagamentos e providenciar o transporte de todos de volta a Salvador. Enquanto isso, os trabalhadores já foram cadastrados para receberem três parcelas de Seguro Desemprego.
Ainda conforme o MTE, o homem é conhecido em Bento Gonçalves por ofertar mão de obra e ele tem outros contratos em vigor que não teriam indicativo, até o momento, de irregularidades. O MTE também tenta identificar os produtores para os quais o empresário prestava serviço, além das vinícolas. Caso sejam identificados, eles podem ter de pagar, assim como as vinícolas, os valores devidos aos trabalhadores, se o empresário não o fizer.
A reportagem tenta contato com a empresa e com o advogado do empresário responsável pela contratação dos safristas.
Até o resgate, o maior número de trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão foi em Bom Jesus, quando 80 homens foram resgatados pelo MTE e PRF. Vítimas eram da Bahia, Paraíba e Maranhão. Caso ocorreu em abril do ano passado.
Colheita da uva
Na quinta-feira (23), a reportagem apurou que os trabalhadores eram ligados à empresa terceirizada Oliveira & Santana, que fornecia a mão de obra para produtores para a colheita da uva e também para três vinícolas, para atuar no descarregamento de uva pós-colheita. As vinícolas seriam Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi.
Por meio de assessorias de imprensa, as três empresas citadas na operação se manifestaram.
O que diz a Aurora:
"NOTA À IMPRENSA
A Vinícola Aurora se solidariza com os trabalhadores contratados pela empresa terceirizada e reforça que não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão.
No período sazonal, como a safra da uva, a empresa contrata trabalhadores terceirizados, devido à escassez de mão-de-obra na região. Com isso, cabe destacar que Aurora repassa à empresa terceirizada um valor acima de R$ 6,5 mil/mês por trabalhador, acrescidos de eventuais horas extras prestadas.
Além disso, todo e qualquer prestador de serviço recebe alimentação de qualidade durante o turno de trabalho, como café da manhã, almoço e janta.
A empresa informa também que todos os prestadores de serviço recebem treinamentos previstos na legislação trabalhista e que não há distinção de tratamento entre os funcionários da empresa e trabalhadores contratados.
A vinícola reforça que exige das empresas contratadas toda documentação prevista na legislação trabalhista.
A Aurora se coloca à disposição das autoridades para quaisquer esclarecimentos."
O que diz a Salton:
"A empresa não possui produção própria de uvas na Serra Gaúcha, salvo poucos vinhedos situados junto a sua estrutura fabril que são manejados por equipe própria. Durante o período de safra, a empresa recorre à contratação de mão de obra temporária. Estes temporários permanecem em residências da própria empresa, atendendo a todos os critérios legais e de condições de habitação. A empresa ainda recorre, pontualmente, à terceirização de serviços para descarga. Neste caso, o vínculo empregatício se dá através da empresa contratada com o objetivo de fornecimento de mão de obra. No ato da contratação é formalizada a responsabilidade inerente a cada parte. Neste formato, são 7 pessoas terceirizadas por esta empresa em cada um dos dois turnos. Estas pessoas atuam exclusivamente no descarregamento de cargas. Através da imprensa, a empresa tomou conhecimento das práticas e condições de trabalho oferecidas aos colaboradores deste prestador de serviço e prontamente tomou as medidas cabíveis em relação ao contrato estabelecido. A Salton não compactua com estas práticas e se coloca à disposição dos órgãos competentes para colaborar com o processo."
O que diz a Cooperativa Garibaldi:
"Nota à imprensa
Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa Oliveira & Santana no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada.
Informa, ainda, que mantinha contrato com empresa diversa desta citada pela mídia.
Com relação à empresa denunciada, o contrato era de prestação de serviço de descarregamento dos caminhões e seguia todas as exigências contidas na legislação vigente. O mesmo foi encerrado.
A Cooperativa aguarda a apuração dos fatos, com os devidos esclarecimentos, para que sejam tomadas as providências cabíveis, deles decorrentes.
Somente após a elucidação desse detalhamento poderá manifestar-se a respeito.
Desde já, no entanto, reitera seu compromisso com o respeito aos direitos – tanto humanos quanto trabalhistas – e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos."