Por volta de 16h30min desta segunda-feira (27), quatro ônibus com 196 trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra, chegaram à Bahia. O primeiro veículo, com 54 resgatados, foi recebido na sede da Defensoria Pública da Bahia, em Salvador. Outros três ônibus levaram trabalhadores para as cidades de Serrinha (52), Lauro de Freitas (5) e Feira de Santana (12), onde foram encaminhados para espaços de acolhimento.
Além disso, fazem parte do grupo de acolhidos mais 73 pessoas de cidades da região do Sisal, que fica a mais de 180 quilômetros de Salvador. Todos passaram por triagem para avaliação das necessidades de saúde, condições de moradia e viabilização da reinserção em programas sociais e no mercado de trabalho.
Os trabalhadores, que haviam embarcado na sexta-feira (24), serão destinados às suas cidades de origem, mas antes passam por um acolhimento em pontos estratégicos promovido pela Defensoria e pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, onde é feito um cadastro e mapeamento inicial das demandas, como moradia, documentação. A viagem deve seguir durante a noite.
Aqueles que não tiverem moradia ou familiares com quem possam ficar serão destinados a espaços de acolhimento em suas cidades com apoio dos serviços municipais como os Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).
De acordo com a defensora pública da Bahia Cristina Ulm, que coordena o Núcleo de Integração do órgão, os defensores vão atuar na identificação das demandas dos assistidos.
— Vamos entender a situação de vulnerabilidade. Seja em ações de saúde, seja nas questões de documentação, que eles podem estar com dificuldade ou terem perdido nessa situação, ter sido extraviada, ou na articulação junto com os órgãos do estado e dos municípios — explicou a defensora.
A Defensoria Pública salienta que alguns destes trabalhadores, em sua maioria homens negros, têm receio de voltar à sua cidade por medo de serem reconhecidos e sofrer retaliações, sendo que alguns destes homens podem ser encaminhados ao programa de proteção à testemunha. O caso está sendo analisado pelos órgãos do Estado.
O secretário de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, Felipe Freitas, que recebeu os trabalhadores nesta tarde, ressaltou o conjunto de iniciativas do Estado para o atendimento às necessidades de saúde, física e mental, de retorno das pessoas aos seus municípios de origem, de segurança, de moradia e de recolocação no mercado de trabalho.
— Paralelamente a essas iniciativas, nós vamos reunir a Comissão Estadual pela Erradicação do Trabalho Escravo e vamos discutir com o Ministério Público Federal, Polícia Federal e com o Ministério dos Direitos Humanos sobre o incentivo à conciliação nacional para que possamos desmontar essa rede de aliciadores. E, o mais importante, desenvolver medidas preventivas para que casos como esse não voltem a acontecer — disse o secretário.
Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), foram calculados R$1,1 milhão em verbas rescisórias devidas, que foram pagas aos trabalhadores. O MTE informa ainda que todos os resgatados terão direito a três parcelas do seguro-desemprego.
Entenda o caso
O caso dos trabalhadores em situação análoga à escravidão foi denunciado após seis homens conseguirem fugir do local onde eram mantidos e buscar contato com a Polícia Rodoviária Federal, que prestou auxílio e deu início à operação. Um dos denunciantes já havia gravado vídeo com um celular e publicado em uma rede social reclamando das condições de trabalho.
Ele relata que foi agredido pelos supostos empregadores por isso. O homem contou à polícia que aproveitou quando os agressores foram atender uma ligação e pulou de uma janela, correndo até um mato próximo do local onde estava. Ele e mais dois trabalhadores, que estavam com ele, aguardaram até as 3h da quarta-feira (22) para sair e pedir ajuda.
Ainda na quarta, uma operação conjunta de PRF, Polícia Federal (PF) e MTE flagrou 180 homens no alojamento, em situação precária de hospedagem, higiene e alimentação. À equipe, trabalhadores relataram que sofriam violência verbal, física, ameaças de morte e eram alimentados com comida estragada. Após o primeiro flagrante, outros 27 homens foram resgatados, na quinta, e encaminhados ao ginásio.
O aliciador da mão de obra e administrador da empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, Pedro Augusto Oliveira de Santana, chegou a ser preso ainda na quarta, mas foi liberado no dia seguinte após pagar fiança de R$ 39.060. Natural de Valente (BA), o empresário está sendo investigado. Ele trabalharia na região, com prestação de serviço, há pelo menos 10 anos, conforme o MTE.
Os homens resgatados atuavam, principalmente, na colheita da uva, em propriedades rurais do município. As três vinícolas — Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton —, citadas pelos trabalhadores e que contrataram o serviço terceirizado da prestadora, afirmaram em notas não ter conhecimento da situação em que os homens eram expostos até a operação, e que irão colaborar com a investigação. As investigações seguem com o MTE, Ministério Público do Trabalho (MPT) e Polícia Federal (PF).
O que dizem as vinícolas?
Por meio de assessorias de imprensa, as três empresas publicaram comunicados.
O que diz a Aurora:
"NOTA OFICIAL
Em respeito aos seus associados, colaboradores, clientes, imprensa e parceiros, a Vinícola Aurora vem à público para reforçar que não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão e se solidariza com os trabalhadores contratados pela terceirizada Oliveira & Santana.
As vítimas são funcionários da Oliveira & Santana, empresa que prestava serviços às vinícolas, produtores rurais e frigoríficos da região.
A Aurora já se colocou à disposição das autoridades para quaisquer esclarecimentos e está prestando apoio às vítimas. A companhia também está trabalhando em conjunto com o Ministério Público Federal e com o Ministério do Trabalho para equalizar a situação em busca de reparo aos trabalhadores da Oliveira & Santana.
A vinícola está tomando as medidas cabíveis e reitera seu compromisso com todos os direitos humanos e trabalhistas, assim como sempre fez em seus 92 anos. Ratifica ainda que permanece cumprindo com suas obrigações legais e com a sua responsabilidade também perante ao valor rescisório a cada trabalhador contratado pela Oliveira & Santana.
A Aurora conta com 540 funcionários, todos devidamente registrados e obedecendo a legislação trabalhista. Porém, na safra da uva, dentro de um período de cerca de 60 dias, entre janeiro e março, a empresa depende de um grande número de trabalhadores, se fazendo necessária a contração temporária para o setor de carga e descarga da fruta, devido à escassez de mão de obra na região.
Quanto à empresa terceirizada, cabe esclarecer que a Aurora pagava à Oliveira & Santana um valor acima de R$ 6,5 mil/mês por trabalhador, acrescidos de eventuais horas extras prestadas. A terceirizada era a responsável pelo pagamento e pelos devidos descontos tributários instituídos em lei. A Aurora também exigia os contratos de trabalhos da equipe que era alocada na empresa.
Todo e qualquer prestador de serviço da Aurora, da mesma forma que os funcionários, recebe alimentação de qualidade durante o turno de trabalho, como café da manhã, almoço e janta, sem distinções.
A vinícola também oferecia condições dignas de trabalho no horário de expediente e os gestores responsáveis desconheciam a moradia desumana em que os safristas eram acomodados pela Oliveira & Santana após o período de trabalho.
Por fim, ratificando seu compromisso social, a Aurora se compromete em reforçar sua política de contratações e revisar os procedimentos quanto à terceiros para que casos isolados como este nunca mais voltem a acontecer."
O que diz a Salton:
"A empresa não possui produção própria de uvas na Serra Gaúcha, salvo poucos vinhedos situados junto à sua estrutura fabril que são manejados por equipe própria. Durante o período de safra, a empresa recorre à contratação de mão de obra temporária.
Estes temporários permanecem em residências da própria empresa, atendendo a todos os critérios legais e de condições de habitação. A empresa ainda recorre, pontualmente, à terceirização de serviços para descarga. Neste caso, o vínculo empregatício se dá através da empresa contratada com o objetivo de fornecimento de mão de obra.
No ato da contratação é formalizada a responsabilidade inerente a cada parte. Neste formato, são 7 pessoas terceirizadas por esta empresa em cada um dos dois turnos. Estas pessoas atuam exclusivamente no descarregamento de cargas.
Através da imprensa, a empresa tomou conhecimento das práticas e condições de trabalho oferecidas aos colaboradores deste prestador de serviço e prontamente tomou as medidas cabíveis em relação ao contrato estabelecido. A Salton não compactua com estas práticas e se coloca à disposição dos órgãos competentes para colaborar com o processo".
O que diz a Cooperativa Garibaldi:
"Nota à imprensa
Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa sob investigação no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada.
Com relação à empresa denunciada, o contrato era de prestação de serviço de descarregamento dos caminhões e seguia todas as exigências contidas na legislação vigente. O mesmo foi encerrado.
A Cooperativa aguarda a apuração dos fatos, com os devidos esclarecimentos, para que sejam tomadas as providências cabíveis, deles decorrentes.
Somente após a elucidação desse detalhamento poderá manifestar-se a respeito.
Desde já, no entanto, reitera seu compromisso com o respeito aos direitos – tanto humanos quanto trabalhistas – e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos."