CORREÇÃO: O nome da empresa que mantinha contratos com os trabalhadores baianos resgatados em operação contra trabalho análogo à escravidão em Bento Gonçalves é Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, e não Fênix Serviços de Apoio Administrativo. A informação errada foi informada pelo advogado Rafael Dorneles da Silva, que se diz defensor da empresa investigada e ficou publicada do dia 24/02/2022 até 16h de 27/02/2022. O texto já foi corrigido.
Em operação deflagrada na noite de quarta-feira (22), foram resgatados cerca de 180 trabalhadores que estavam atuando na colheita da uva, no carregamento da fruta em vinícolas e junto a aviários em Bento Gonçalves em condições análogas à escravidão. Na quinta-feira (23), outras 24 pessoas foram resgatadas na mesma situação.
A ação foi desencadeada pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), Polícia Federal (PF) e por agentes do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). O resgate já se transformou no maior deste tipo na história do Estado. O anterior havia sido registrado em Bom Jesus, quando 80 trabalhadores foram resgatados em abril do ano passado.
Confira, a seguir, os principais pontos sobre esta operação.
Como o caso veio à tona?
A situação foi denunciada após seis homens conseguirem fugir do local onde viviam e buscar contato com a Polícia Rodoviária Federal, que prestou auxílio aos trabalhadores e deu início à operação.
Um dos denunciantes já havia gravado vídeo com um celular e publicado em uma rede social reclamando das condições de trabalho. Ele relata que foi agredido pelos supostos empregadores por isso.
— Tomei cadeirada, spray de pimenta, estou com os dentes moles. Eu escutei eles falando que um carro estava vindo para levar para me matarem. O tempo dos escravos eu não vivi, acho que nem minha bisavó viveu. Hoje vai existir escravo de novo? Não vai. O que depender de mim, não vai, eu vou abrir minha boca, eu vou falar que tá errado — afirmou o trabalhador na gravação.
O homem contou à polícia que aproveitou quando os agressores foram atender uma ligação e pulou de uma janela, correndo até um mato próximo do local onde estava. Ele e mais dois trabalhadores, que estavam com ele, aguardaram até as 3h da quarta-feira (22) para sair e pedir ajuda.
Como foram as operações de resgate?
Policiais e funcionários do MTE saíram de Caxias do Sul por volta das 19h15min e chegaram a Bento Gonçalves pouco depois das 20h de quarta-feira. Os agentes foram até uma pousada, no bairro Borgo, onde os trabalhadores estariam hospedados. No local, foram encontrados cerca de 180 trabalhadores. Os policiais colheram seus relatos, que reforçaram as denúncias apresentadas pelo primeiro grupo.
Na quinta-feira, segundo dia de operação, mais 24 trabalhadores foram encontrados em parreirais no município. Segundo o MTE, eles não dormiram na pousada e, por isso, não foram encontrados na noite de quarta, quando a ação de resgate foi desencadeada.
De acordo com o gerente regional do MTE de Caxias do Sul, Vanius Corte, o número de resgatados ainda pode aumentar nos próximos dias.
De onde vieram os trabalhadores?
Os resgatados relataram aos policiais que foram cooptados por aliciadores de mão de obra, conhecidos como gatos, na Bahia. Posteriormente, foram trazidos para a Serra para atuar em uma empresa que presta serviços para produtores rurais, vinícolas e aviários da região.
A oferta de trabalho prometia, segundo os aliciados, salário de R$ 3 mil, alimentação e alojamento incluídos, o que não se concretizou quando chegaram ao Rio Grande do Sul.
O grupo chegou a Bento Gonçalves de Salvador (BA) no dia 2 de fevereiro, após quatro dias e meio de viagem.
Em que condições eles viviam?
Ainda na estrada, contaram os trabalhadores, começaram a notar que a realidade não seria como prometida. O gasto com comida nas paradas já estava sendo descontado do salário, e a promessa de banho quente e descanso ao chegar também não foi concretizada.
A pousada onde os trabalhadores estavam tem quatro andares de alojamento, com quantidade de camas que varia conforme o tamanho do quarto. A reportagem esteve no local e observou colchões e chão sujos, além de forte mau cheiro. Conforme relato dos trabalhadores, os lençóis não eram trocados. O local foi interditado na quarta-feira.
Como era o trabalho?
Os trabalhadores relataram que eram obrigados a trabalhar diariamente das 5h às 20h, sem pausas, e com folgas apenas nos sábados — embora fossem forçados a assinar no ponto que folgavam também aos domingos.
Todos estavam com vínculo empregatício com a prestadora de serviço Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda de Bento Gonçalves, segundo o MTE. A empresa atua na colheita da uva e transportando aves em aviários e prestava serviços a grandes vinícolas da região, como Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi.
Os resgatados ainda narraram que representantes da empresa que os aliciou ofereciam a eles comida estragada, que só podiam comprar produtos em um mercadinho perto do alojamento, com preços superfaturados, e que o valor gasto era descontado do salário, o que fazia com que os trabalhadores acabassem o mês devendo, pois o consumo superava o valor da remuneração. Afirmaram ainda que eram impedidos de sair do local e que, se quisessem sair, teriam que pagar a suposta "dívida". Que, além disso, os empregadores ameaçavam seus familiares.
O que acontecerá com os trabalhadores?
Após a operação de resgate, os trabalhadores foram levados ao Ginásio Municipal de Esportes Darcy Pozza, no bairro Planalto, em Bento Gonçalves. Segundo o secretário municipal de Assistência Social, Eduardo Virissimo, cerca de 215 homens foram alojados no local — 207 resgatados e os demais sem relação com a operação, conforme o MTE.
No ambiente foi oferecido aos resgatados estrutura de higiene pessoal, roupas e alimentação. Todos os produtos e alimentos utilizados foram disponibilizados pela prefeitura. No ginásio, os trabalhadores foram cadastrados para receber três parcelas de Seguro Desemprego.
Na noite de sexta (24), os trabalhadores resgatados começaram a voltar para casa por volta da 1h. Segundo o governo da Bahia, 196 homens chegaram ao Estado nesta segunda-feira (27).
Outros nove gaúchos, resgatados na mesma operação retornaram para seus locais de origem por ônibus de linha. Quatro trabalhadores resgatados, segundo o MTE, optaram por ficar em Bento. Os 207 resgatados têm idade que variam de 18 a 27 anos.
Quem aliciou os trabalhadores?
O administrador da empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda de Bento Gonçalves, Pedro Augusto Oliveira de Santana, 45 anos, chegou a ser preso durante a operação. Posteriormente, foi liberado após pagar fiança no valor de R$ 39.060. Ele é natural de Valente, também na Bahia, e é investigado como sendo o responsável por aliciar a mão de obra na Bahia e trazer os trabalhadores para a Serra gaúcha.
Conforme o MTE, o homem é conhecido em Bento Gonçalves por ofertar mão de obra, tendo ainda outros contratos em vigor que, até o momento, não teriam indicativo de irregularidades. Ele trabalharia há cerca de 10 anos prestando esses serviços na região.
Vanius Corte, gerente regional do MTE em Caxias do Sul, informou que, para isso, o prestador de serviço investigado criou a empresa Oliveira & Santana, em 2012, a qual foi mantida em funcionamento até 2019. Em fevereiro daquele ano, a empresa chegou a ter 206 funcionários registrados, conforme o MTE. Corte disse ainda que, entre 2015 e 2019, a empresa foi autuada 10 vezes por irregularidades em contratos trabalhistas e que alojamentos também já tinham sido interditados neste período, contudo, não havia registro de trabalho análogo a escravo.
Já a empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda foi criada em janeiro de 2019. Ela está em nome de uma mulher e Santana atua como administrador. A nova empresa ainda não havia sido fiscalizada pelo Ministério até esta operação deflagrada na última quarta-feira.
Por meio de nota, o advogado da empresa, Rafael Dorneles da Silva, disse que Santana tem atuação reconhecida no município e os devidos esclarecimentos serão prestados em juízo.
Quais são os próximos passos da operação?
Segundo o gerente regional do MTE, o enfoque das ações fiscais, num primeiro momento, é a formalização dos contratos de trabalho e verificação das condições dos alojamentos. Posteriormente, será realizada uma audiência pública para buscar uma adequação do setor. Nesta audiência, serão chamados os representantes dos produtores, os sindicatos, as vinícolas e as secretarias municipais de Agricultura. Ainda não há data marcada.
As vinícolas envolvidas podem ser responsabilizadas?
Corte afirma que as vinícolas Aurora, Salton e a Cooperativa Garibaldi podem ser responsabilizadas pelo pagamento dos direitos trabalhistas dos homens que viviam em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves.
Presidente da Associação dos Gaúcha dos Advogados Trabalhistas, Felipe Carmona esclarece que as vinícolas precisam fiscalizar o prestador de serviço e zelar pelo profissional que atua no seu negócio, mesmo que seja terceirizado. Não acompanhar as condições dos profissionais também é negligência.
Dessa forma, as despesas das verbas trabalhistas podem, sim, ser assumidas pelas três empresas da Serra caso o contratante original não faça a quitação. Isso ocorre porque as vinícolas têm responsabilidade solidária em relação aos trabalhadores que prestaram serviços, mesmo sendo contratados por terceiros. No caso, a responsabilização seria financeira, e não haverá processo criminal contra as vinícolas.
Além das indenizações individuais aos trabalhadores, nessas situações, costuma-se cobrar um valor coletivo pelo dano à sociedade, que é destinado a ações de combate ao trabalho escravo.
Na coletiva de imprensa no sábado (25), os órgãos que estão à frente da operação e investigação divulgaram que, além das vinícolas, 23 proprietários rurais contratavam os serviços dos trabalhadores que foram resgatados. Os nomes dos 23 não foram divulgados.
O que dizem as vinícolas?
As três vinícolas — Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton —, citadas pelos trabalhadores e que contrataram o serviço terceirizado da prestadora, afirmaram em notas não ter conhecimento da situação em que os homens eram expostos até a operação, e que irão colaborar com a investigação.
Por meio de assessorias de imprensa, as três empresas publicaram comunicados.
O que diz a Aurora:
"NOTA À IMPRENSA
A Vinícola Aurora se solidariza com os trabalhadores contratados pela empresa terceirizada e reforça que não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão.
No período sazonal, como a safra da uva, a empresa contrata trabalhadores terceirizados, devido à escassez de mão de obra na região. Com isso, cabe destacar que Aurora repassa à empresa terceirizada um valor acima de R$ 6,5 mil/mês por trabalhador, acrescidos de eventuais horas extras prestadas.
Além disso, todo e qualquer prestador de serviço recebe alimentação de qualidade durante o turno de trabalho, como café da manhã, almoço e janta.
A empresa informa também que todos os prestadores de serviço recebem treinamentos previstos na legislação trabalhista e que não há distinção de tratamento entre os funcionários da empresa e trabalhadores contratados.
A vinícola reforça que exige das empresas contratadas toda documentação prevista na legislação trabalhista.
A Aurora se coloca à disposição das autoridades para quaisquer esclarecimentos".
O que diz a Salton:
"A empresa não possui produção própria de uvas na Serra Gaúcha, salvo poucos vinhedos situados junto à sua estrutura fabril que são manejados por equipe própria. Durante o período de safra, a empresa recorre à contratação de mão de obra temporária.
Estes temporários permanecem em residências da própria empresa, atendendo a todos os critérios legais e de condições de habitação. A empresa ainda recorre, pontualmente, à terceirização de serviços para descarga. Neste caso, o vínculo empregatício se dá através da empresa contratada com o objetivo de fornecimento de mão de obra.
No ato da contratação é formalizada a responsabilidade inerente a cada parte. Neste formato, são 7 pessoas terceirizadas por esta empresa em cada um dos dois turnos. Estas pessoas atuam exclusivamente no descarregamento de cargas.
Através da imprensa, a empresa tomou conhecimento das práticas e condições de trabalho oferecidas aos colaboradores deste prestador de serviço e prontamente tomou as medidas cabíveis em relação ao contrato estabelecido. A Salton não compactua com estas práticas e se coloca à disposição dos órgãos competentes para colaborar com o processo".
O que diz a Cooperativa Garibaldi:
"Nota à imprensa:
Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa Oliveira & Santana no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada.
Informa, ainda, que mantinha contrato com empresa diversa desta citada pela mídia.
Com relação à empresa denunciada, o contrato era de prestação de serviço de descarregamento dos caminhões e seguia todas as exigências contidas na legislação vigente. O mesmo foi encerrado.
A Cooperativa aguarda a apuração dos fatos, com os devidos esclarecimentos, para que sejam tomadas as providências cabíveis, deles decorrentes.
Somente após a elucidação desse detalhamento poderá manifestar-se a respeito.
Desde já, no entanto, reitera seu compromisso com o respeito aos direitos – tanto humanos quanto trabalhistas – e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos".
O que diz a nota de esclarecimento enviada pelo advogado de defesa da Fênix
"NOTA DE ESCLARECIMENTO À IMPRENSA
Diante dos fatos noticiados em relação a operação de combate ao trabalho análogo à escravidão ocorrida na última quinta-feira, em Bento Gonçalves, a empregadora Fênix Serviços de Apoio Administrativo e seus administradores esclarecem que os graves fatos relatados pela fiscalização do trabalho serão esclarecidos em tempo oportuno, no decorrer do processo judicial.
Cabe mencionar que o empresário envolvido nas acusações é um empreendedor de atuação reconhecida e respeitada, não compactuando com qualquer desrespeito aos colaboradores e aos direitos a eles inerentes.
Além disso, é importante ressaltar que qualquer conclusão neste momento é meramente especulativa e temerária, uma vez que os fatos e as responsabilidades devem ser esclarecidas em juízo.
Manifestamos total respeito às instituições e nos colocamos à disposição da Justiça para todos os esclarecimentos necessários, colaborando no que for necessário para o restabelecimento da verdade e principalmente do bem-estar de todos os envolvidos. Por fim, informamos que os trabalhadores estão recebendo todo o auxílio necessário para que esta situação não traga maiores prejuízos aos mesmos.
Rafael Dorneles da Silva"