O clima na manhã desta sexta-feira (24) próximo ao Ginásio Municipal Darcy Pozza, onde os 206 trabalhadores resgatados em trabalho análogo à escravidão em Bento Gonçalves na última quarta-feira (22) estão alojados, é de apreensão. A maioria dos homens ficou toda a manhã dentro do espaço e não enfrentou o dia chuvoso e de temperatura amena.
Sentados em colchonetes ou cadeiras colocados pela prefeitura ainda na quinta-feira (23), eles conversavam e ainda tentavam enfrentar os reflexos da exploração pela qual passaram. Outros, grande parte de bermuda e chinelos, encararam o dia frio e circulam em frente ao prédio. A prefeitura não autorizou a entrada da imprensa no ginásio - as fotos foram feitas por um dos trabalhadores.
Na parte de fora do espaço foi possível ver mais de um dos homens perguntando aos guardas municipais que estão no local se já estava definido quando eles sairiam dali e voltariam para as suas cidades, na Bahia. Muitos tremiam de frio (nesta manhã a temperatura em Bento é de 19°C) e relataram que estão há noites sem dormir.
Por volta das 9h40min, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) começou a chamar os trabalhadores, por ordem alfabética, para cadastramento no ginásio. Eles estão sendo identificados, segundo os fiscais, para facilitar o processo do pagamento pela empresa que os contratou. Ainda não há uma data, segundo o MTE, para retorno dos homens às suas cidades: primeiro é preciso que a empresa pague pelos direitos trabalhistas e depois que forneça o transporte.
Dos 206 trabalhadores resgatados na operação de quarta-feira, oito são gaúchos e os demais vieram da Bahia para trabalhar na Serra. Cerca de 180 trabalhavam de forma terceirizada na safra da uva, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Os demais atuavam no transporte de aves em aviários. De acordo com o gerente regional do MTE, Vanius Corte, a maioria chegou para trabalhar na Serra no final de janeiro.
Morador de Salvador, um homem de 37 anos desistiu de trabalhar com carteira assinada para vir para a Serra porque a proposta que recebeu era para receber R$ 4 mil, alimentação e alojamento:
— Um amigo chegou com a informação que estavam contratando para trabalhar na colheita da uva. Eu fui chamando o pessoal e a maioria dos que estão aqui moravam no meu bairro lá em Salvador. Eu nunca mais coloco os pés aqui. Eu era retirado da cama com arma de choque, com agressões.
Ele tem um ferimento no supercílio depois de ser agredido por segurança ao separar uma briga. Ele conta que eram forçados a comer comida estragada e que os seguranças falavam que deviam agradecer e que "baiano bom é baiano morto":
— Viemos pra trabalhar e chegamos aqui e fomos morar num quarto apertado que parecia uma cela de presídio ou hospício. Eu não vejo as pessoas aqui como policiais ou do Ministério do Trabalho ou repórter: vejo como nossos anjos que Deus mandou depois das orações das nossas famílias.
Ele conta que emagreceu muito desde que chegou o que causou ainda mais desespero na família dele em Salvador.
— A gente só quer ir embora daqui o mais rápido possível. Eles botavam terror e chamavam a gente de demônio e andavam com arma de fogo, cassete e espero que isso sirva de alerta quando receber propostas de emprego por Facebook ou whatsapp. Não vá sem investigar que é isso mesmo. Que ninguém mais passe por isso. A gente não está bem emocionalmente. O que eles vão pagar ainda é pouco e eles tem que pagar pelo que fizeram com a gente
Outro trabalhador que foi resgatado conta que viu a chance de emprego na Serra gaúcha por um link da internet encaminhado por uma prima:
— Eu só quero voltar para minha casa. Fomos tratados como escravos e eles andavam armados para nos deixar com medo. Não durmo há dias. Precisamos de psicólogos porque o que passamos foi horrível.
Para outro homem, os dias na Serra vão demorar para serem esquecidos:
— É um trauma para o resto da vida. Viemos do Nordeste para trabalhar. Bento é uma cidade tão bonita e olha o que fizeram com a gente. Vivemos em cativeiro. Trabalhava das 4h até a noite sem comer e sem dormir. Nós queremos indenização e respeito. Ninguém pode ser tratado assim.
Segundo o MTE, o empresário que foi preso na quarta e solto na quinta-feira depois de pagar fiança trabalha há pelo menos 10 anos em Bento oferecendo prestação de serviço.
Colheita da uva
Na quinta-feira (23), a reportagem apurou que os trabalhadores eram ligados à empresa terceirizada Oliveira & Santana, que fornecia a mão de obra para produtores para a colheita da uva e também para três vinícolas, para atuar no descarregamento de uva pós-colheita. As vinícolas seriam Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi.
Por meio de assessorias de imprensa, as três empresas citadas na operação se manifestaram.
O que diz a Aurora:
"NOTA À IMPRENSA
A Vinícola Aurora se solidariza com os trabalhadores contratados pela empresa terceirizada e reforça que não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão.
No período sazonal, como a safra da uva, a empresa contrata trabalhadores terceirizados, devido à escassez de mão-de-obra na região. Com isso, cabe destacar que Aurora repassa à empresa terceirizada um valor acima de R$ 6,5 mil/mês por trabalhador, acrescidos de eventuais horas extras prestadas.
Além disso, todo e qualquer prestador de serviço recebe alimentação de qualidade durante o turno de trabalho, como café da manhã, almoço e janta.
A empresa informa também que todos os prestadores de serviço recebem treinamentos previstos na legislação trabalhista e que não há distinção de tratamento entre os funcionários da empresa e trabalhadores contratados.
A vinícola reforça que exige das empresas contratadas toda documentação prevista na legislação trabalhista.
A Aurora se coloca à disposição das autoridades para quaisquer esclarecimentos."
O que diz a Salton:
"A empresa não possui produção própria de uvas na Serra Gaúcha, salvo poucos vinhedos situados junto a sua estrutura fabril que são manejados por equipe própria. Durante o período de safra, a empresa recorre à contratação de mão de obra temporária. Estes temporários permanecem em residências da própria empresa, atendendo a todos os critérios legais e de condições de habitação. A empresa ainda recorre, pontualmente, à terceirização de serviços para descarga. Neste caso, o vínculo empregatício se dá através da empresa contratada com o objetivo de fornecimento de mão de obra. No ato da contratação é formalizada a responsabilidade inerente a cada parte. Neste formato, são 7 pessoas terceirizadas por esta empresa em cada um dos dois turnos. Estas pessoas atuam exclusivamente no descarregamento de cargas. Através da imprensa, a empresa tomou conhecimento das práticas e condições de trabalho oferecidas aos colaboradores deste prestador de serviço e prontamente tomou as medidas cabíveis em relação ao contrato estabelecido. A Salton não compactua com estas práticas e se coloca à disposição dos órgãos competentes para colaborar com o processo."
O que diz a Cooperativa Garibaldi:
"Nota à imprensa
Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa Oliveira & Santana no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada.
Informa, ainda, que mantinha contrato com empresa diversa desta citada pela mídia.
Com relação à empresa denunciada, o contrato era de prestação de serviço de descarregamento dos caminhões e seguia todas as exigências contidas na legislação vigente. O mesmo foi encerrado.
A Cooperativa aguarda a apuração dos fatos, com os devidos esclarecimentos, para que sejam tomadas as providências cabíveis, deles decorrentes.
Somente após a elucidação desse detalhamento poderá manifestar-se a respeito.
Desde já, no entanto, reitera seu compromisso com o respeito aos direitos – tanto humanos quanto trabalhistas – e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos."