A tradicional Rosa dos Ventos, o marco zero da construção de Caxias do Sul, corre o risco de cair no esquecimento por parte da comunidade. Furtado em agosto de 2018, o monumento impregnado de história ainda não foi recolocado na calçada da Rua Marquês do Herval, na Praça Dante Alighieri, entre a Sinimbu e a Avenida Júlio de Castilhos. No lado leste da praça, sobrou apenas o espaço vazio entre as pedras portuguesas no coração da cidade. A ideia de recolocar o monumento em granito foi cogitada, mas não teve avanços.
Era a partir daquele ponto da praça que os agrimensores, que determinam as medidas legais das propriedades, faziam as medições de terra no município. Assim, segundo informações do Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami, os profissionais determinavam as léguas, quadras e distâncias de Caxias do Sul. O marco zero foi construído em madeira e, posteriormente, fixado em azulejo. Em 1975 foi substituído por uma placa de bronze, que permaneceu no local até ser levada da praça há cinco anos.
Demais monumentos também parecem esquecidos no espaço que é considerado um dos cartões postais de Caxias de Sul. As placas históricas de bronze foram retiradas das esculturas em 2018, na gestão de Daniel Guerra, para evitar que fossem levadas por ladrões. Na época, a ideia do município era substituir as peças por outro tipo de material menos valioso, e que assim não chame a atenção de vândalos, que furtam o material para vender. Contudo, passadas duas administrações, a de Flávio Cassina e, atualmente, de Adiló Didomênico, nada foi feito. Apesar de o município garantir que está entre as prioridades, ainda não está definido o material que será utilizado para que a Rosa do Ventos retorne ao espaço, e nem em relação às placas dos demais monumentos.
História roubada
Entre quem passa pela praça, há moradores que ainda lembram que, naquela pedra vazia, existia um monumento importante para o município. São eles que tentam manter viva a memória de Caxias do Sul:
— Esses dias quis mostrar para uma criança que está aprendendo os pontos cardeais na escola e trouxe o menino pela mão até a praça. Então, quando cheguei, me surpreendi pela Rosa dos Ventos não estar mais no lugar a que pertence. Lembrei que foi roubada, mas acreditava que tivesse sido reposta e fiquei triste ao ver que não está mais ali — conta a psicopedagoga Daili Croda, 74 anos, olhando para o local.
Ela lembra que as escolas levavam os alunos até o marco zero para ensinar sobre os pontos cardeais. A praça fica na rota da caxiense, que vive no bairro Panazzolo e vai a pé para o trabalho todos os dias:
— Ao ir até a Rosa dos Ventos, a gente posicionava a criança e trabalhava os conteúdos mostrando para eles onde fica o norte, sul, leste e oeste, e também sobre o que significou para a construção e história da cidade. Passo todos os dias pela Sinimbu em frente ao monumento onde estava o Duque de Caxias, e que também foi levado. É uma lástima porque "roubam" a nossa história.
Para outros frequentadores existe a vaga lembrança de que a Rosa dos Ventos ficava em algum ponto da Marquês do Herval. Alguns apontaram em direção ao Banco do Brasil, com um olhar de incerteza: "Era ali?", questionaram. Outros nem sequer lembram do monumento, especialmente os mais jovens.
Sensação de abandono
Um taxista de 56 anos, que prefere não se identificar, falou sobre a sensação de abandono na Praça Dante Alighieri. Ele alerta para o fato do espaço ser frequentado para o uso de bebidas alcoólicas e de drogas. O motorista também criticou a sujeira. Ele observou que uma equipe da Codeca e outra da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Semma) estavam no local, mas ressalta que tanto os bancos quanto o entorno têm um aspecto de sujeira.
— Nunca vi a nossa praça tão malcuidada. Ela está sempre suja. Os monumentos estão abandonados. Faz cinco anos que a Rosa dos Ventos foi levada do cartão postal da cidade. Antes, a praça era cheia de vida e colorida. Ao longo dos anos esse ambiente foi mudando, e parece ter sido deixado de lado —afirma.
Ele lembra de uma ocasião em que levou duas turistas até a Praça Dante e elas ficaram encantadas:
— Foi em uma Festa da Uva e lembro que as passageiras eram de Roraima e tinha vindo para festa. Elas falaram que a nossa praça parecia um jardim. Agora, só o que vejo é um descasco com um dos nossos cartões postais — lamenta o motorista, que trabalha no ponto da Rua Marquês do Herval com a Avenida Júlio de Castilhos há vinte anos.
Ainda sem definição
A secretária da Cultura de Caxias do Sul, Cristina Calcagnotto, ressalta que, apesar de estar nos planos do Executivo recolocar o monumento, ainda não há definição sobre o material da Rosa dos Ventos e nem sobre as placas dos demais monumentos.
— A gente está fazendo um levantamento e um estudo de colocar, inclusive, nas placas também dos monumentos algum material que não seja tão atrativo ao furto. Ainda está em andamento e depois também precisamos buscar os investimentos —afirma Cristina.
A secretária adianta que nada deve mudar antes de 2024, mas reafirma que é uma prioridade e, por isso, o município tem conversado com apoiadores para preservar a história da cidade:
— Este ano isso não deve se desenrolar, mas no próximo a gente tem a expectativa de conseguir dar um encaminhamento. É uma preocupação que a gente tem em recolocar a Rosa dos Ventos e as demais placas dos monumentos de volta, mas de modo que elas depois permaneçam, para deixar fixo e cumpra o seu papel —ressalta.
Construção da cidade
O historiador e coordenador do Instituto de Memória Histórica e Cultural (IMHC) da UCS, Anthony Beux Tessari, lembra que outros documentos ou fotografias carregam o mesmo teor histórico dos que estão expostos, mas estão guardados em museus ou no arquivo histórico. Enquanto isso, as esculturas a céu aberto estão ali justamente para serem vistas, com o objetivo que a cidade possa ser entendida e os moradores compreendam a própria história.
A cidade se aproxima da comemoração de três datas históricas. No ano que vem, completam-se os 145 anos da urbanização da cidade. Em 2025, os 130 anos de emancipação política e os 150 anos de imigração italiana na região. O historiador lembra que esse temas são relacionados exatamente ao marco zero.
— O monumento é muito interessante porque não personaliza diretamente ninguém, ou seja, ele não homenageia explicitamente uma pessoa ou uma personalidade política ou de qualquer outro setor da sociedade. A Rosa dos Ventos se refere ao processo de construção da cidade.
Nostálgico, ele lembra de um trabalho de escola, e até reflete que talvez essa atividade ligada aos monumentos da Praça Dante, entre eles, o marco zero, tenha despertado a paixão dele pela História. Tessari recorda que, na companhia dos colegas, pesquisou sobre as pedras portuguesas que formam a praça, sobre quem era o artista responsável pelo monumento à Independência 1922, sobre o significado dos bustos do Dante Alighieri e de Júlio de Castilhos, e sobre a Rosa dos Ventos:
— Lembrei desse trabalho da escola e me fez pensar que talvez tenha sido inclusive uma contribuição para que eu decidisse me tornar professor de História anos mais tarde. A dinâmica do trabalho, da gente ir a campo, de pesquisar, de ter esse olhar para aquilo que a gente via cotidianamente na cidade foi muito marcante. Esses monumentos ali presentes como fontes históricas, e eu considero indispensável um cuidado para com esses bens, especialmente a Rosa dos Ventos, que tem um grande potencial pedagógico e educativo.
Contrapontos sobre limpeza e segurança da praça
Conforme as informações da assessoria de imprensa da Semma, a limpeza na Praça Dante Alighieri é realizada diariamente por servidores da Codeca e da pasta, incluindo, os bancos e os banheiros públicos que recebem manutenção.
Em relação à jardinagem, o diretor de Serviços da SEMMA, Ramon Sirtoli, explica que está em andamento a revitalização de canteiros e replantio de flores e vegetação de porte médio. O serviço inclui a troca dos gramados e a poda de árvores para permitir uma visão mais ampla de toda a praça, o que já é plenamente perceptível.
Sobre a questão da segurança, a Guarda Municipal tem atuado sempre que acionada para dispersar grupos de moradores em situação de rua que acabam se aglomerando no espaç
Confira a situação dos monumentos:
- A Estátua da Liberdade é uma das poucas que parece ter passado despercebida pelos vândalos. A escultura ocupa um espaço nobre próximo a Júlio de Castilhos, em frente ao chafariz, desde 7 de setembro de 1922. Não há sinais de vandalismo ou ausência de itens no monumento. Nos demais há pichações e até peças de roupas penduradas, bem como uma ausência de elementos que contavam a história da cidade.
- No banco em frente à musa inspiradora de Dante Alighieri, a escultura de Beatrice Portinari, havia uma pessoa em situação de rua dormindo na manhã da última quarta-feira (22). Ao lado da estátua, colocada no espaço em 2015, havia peças de roupas. A identificação foi fabricada pela prefeitura em uma placa de metal, instalada junto ao banco. Porém, o objeto não está mais junto da escultura.
- Perto da musa está o busto de Dante Alighieri, patrono do espaço. Na estátua instalada em 1914, não há nada que identifique quem ele foi. A ideia de colocar Beatrice Portinari foi justamente para atrair atenção para o poeta, já que poucas pessoas conheciam a história do italiano que é autor de "A Divina Comédia"
- A Eterna Continência também tem marcas de abandono. Inaugurada em 1959, e feita em concreto com adornos metálicos, era ali que ficava o busto de Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, patrono do Exército Brasileiro e inspirador do nome da cidade. Ele foi furtado em agosto de 2021, sendo que as letras com a inscrição Ao duque, o Exército e a cidade foram retiradas, mas é possível ler devido as marcas do metal que estão na estrutura.
- O novo busto já está em Caxias do Sul. O monumento foi fundido no Rio de Janeiro, e já passou pela análise do Arquivo Histórico do Exército Brasileiro, que emitiu um certificado de que representa fielmente o Duque de Caxias. Uma novidade, que gerou debate, é a instalação de uma proteção extra, feita com vidro, para evitar a ação de ladrões e vândalos.
- Outro monumento abandonado é a homenagem à Gigia Bandera. Instalado na Rua Dr. Montaury, em frente à Casa da Cultura, a escultura ocupa a praça desde 1996. A data marcou a celebração do centenário da antiga Metalúrgica Abramo Eberle. Atrás da estatua, outra peça de roupa estava pendurada, assim como na "Musa de Dante". A placa de bronze da escultura foi furtada em 2018. Desde então não foi mais recolocada.
- No espaço estão fixados cartazes com orações, sendo que parte deles está rasgado. Quem passa por ali, não sabe quem foi Luísa Eberle, a Gigia Bandera. A placa devia informar que ela é um "Símbolo da intrépida participação da mulher na geração e no progresso desta cidade, fonte inspiradora da industrialização do nordeste do Estado". Também há pichações na base do monumento
- O monumento a Júlio de Castilhos, que dá nome a Avenida mais antiga e conhecida de Caxias do Sul, foi inaugurado em 1914 e recolocado em 1936 após obras na praça. O monumento hoje é ponto de encontro para moradores em situação de rua. Na última quarta-feira (29), assim como acontece com frequência, um grupo ocupava os bancos ao redor e usava a parte de baixo da escultura como banco.