A folhagem comprada na Festa da Uva de 1989, ano de nascimento da filha, ganhou um significado ainda maior para Deomar Silveira Rodrigues, 62 anos, e Mara Lucia Damiani, 56, desde que Dhiuliane Damiani Martins foi morta, aos 32 anos de idade. Enfeitando o apartamento onde vivem com as outras três filhas e os dois netos — filhos de Dhiuliane — a planta robusta e saudável passou do status de lembrança para símbolo que, à família, representa a vida que continua, apesar da dor. Enaltecido, em um ponto de destaque na composição da sala, o resistente sigônio de três décadas virou uma das poucas certezas em meio à instabilidade instalada no momento em que soube-se quem era a mulher assassinada à queima-roupa, em plena luz do dia, em um dos pontos mais movimentados de Caxias do Sul. O crime aconteceu na tarde de 29 de dezembro de 2020.
Além de lidar com a perda repentina daquela que era considerada a alegria da casa, os pais de Dhiuliane ainda tentam se reestruturar a partir do episódio que, invariavelmente, marcará para sempre suas vidas. As lembranças estão por toda parte e Deomar diz conviver com o sofrimento 24 horas por dia. Mara, que tenta amenizar a saudade com vídeos e fotos da filha, ainda reúne forças para lutar contra um câncer diagnosticado no ano passado. O casal chegou a pensar em se mudar, mas não enquanto assume a responsabilidade de cuidar da neta de 12 anos e do neto de 15. A guarda foi conquistada na Justiça, em disputa travada contra o pai dos adolescentes, que foi denunciado pelo Ministério Público como mandante do crime que vitimou Dhiuliane. Diego Andrigo de Souza, ex-marido da vítima, nega as acusações. Ele responde o processo em liberdade e usufrui do direito de conviver com os filhos.
Enquanto dizem manter, na vida prática, as condições para que os netos se desenvolvam de forma saudável, os avós demonstram preocupação com os reflexos que a falta da mãe causa e o quanto ela ainda poderá impactar a longo prazo.
Para lidar com a situação da melhor forma possível, embora seja difícil, o casal diz que tenta separar os dois casos: o que se refere aos direitos de Diego como pai e o que ele figura como réu em julgamento de crime de feminicídio. Em meio à espera por justiça, a dor é a única constante.
— Todo cara que pensa em feminicídio acha que é dono da mulher. Separou hoje, não queria, e ela não pode ficar com outro, não pode fazer mais nada, eles vão lá e matam. Mas antes eles têm que analisar ao redor dela, se colocar no lugar e pensar que, se fosse ele, como a mãe dele iria se sentir. Antes deles fazerem isso — e isso serve pro que fizeram pra mim (minha filha) e pros que estão pensando em fazer com outras mulheres — pensem sempre na família, porque não matam só ela (a mulher), matam a família inteira; mas a família fica de pé, sofrendo. O cara sabe que é irreversível... Eu vou morrer com essa dor — lamenta o pai de Dhiuliane.
A defesa de Diego foi procurada pela reportagem que reiterou a inocência do cliente no processo criminal, que ainda está em fase de instrução — faltando interrogatórios e depoimentos de testemunhas antes de ser iniciada a fase de júri.
Feminicídio: um crime contra a família
Dados do Observatório Estadual de Segurança Pública indicam que, de janeiro a agosto de 2022, foram registrados 75 feminicídios em todo o Estado, sendo que 62 vítimas eram mães. O levantamento aponta, ainda, que diante destes crimes consumados, 158 pessoas perderam suas mães, sendo 69 crianças e adolescentes com idades entre 12 e 18 anos. Em 93,4% dos casos o autor foi o companheiro ou ex-companheiro da vítima; e em 74,7% dos casos, a residência foi o local do crime.
A desestruturação familiar causada por este tipo de crime é evidente nos processos que passam pelas mãos da promotora de Justiça de Caxias do Sul Graziela Vieira Lorenzoni. A profissional, que atua na Promotoria Criminal de Caxias do Sul, conta que desde que passou a trabalhar em Caxias do Sul, em dezembro de 2021, se dedica a uma média de três casos de feminicídio por mês, entre tentados e consumados. Uma frequência que jamais tinha visto em 22 anos de trajetória no Ministério Público.
No recorte por município, Caxias do Sul, que tem 523.716 habitantes, segundo projeção do IBGE para 2021, aparece com cinco registros de feminicídio consumados até o final de agosto. A cidade lidera a lista estadual de casos ao lado de Porto Alegre, que tem praticamente o triplo da população estimada, 1.492.530, e Passo Fundo, que tem menos da metade: 206.103.
A cidade da Serra também se destaca negativamente nos registros de tentativa de feminicídio, com cinco casos de janeiro a agosto, mesmo número de cidades como Santa Maria e Santiago. Em Passo Fundo, o número de tentativas é maior, sete, e a lista é liderada por Porto Alegre, com 23 registros.
— A maioria dos casos que atendo são cruéis e causaram impactos enormes às famílias envolvidas — conta a promotora.
Dentre os mais marcantes, está o da venezuelana Ariana Victoria Godoy Figuera, 24 anos, que morreu após ataque com líquido ácido. O crime foi cometido em dezembro de 2019 e, em maio deste ano, Deivis Lobato Braga (ex-namorado da vítima) foi condenado a 17 anos de reclusão. Quando foi morta, Ariana deixou um filho de quatro anos e uma filha de um ano — que estão sob cuidados de familiares.
Ariana era a quinta filha em uma família de sete irmãos. Ela estava no Brasil desde o final de 2017, ano em que também se mudaram para o país cinco irmãos e a mãe, Gabriela de Jesus Figuera,52. Nos últimos anos, ela se agarrou à fé para suportar a falta da filha com quem mais convivia.
— Eu acredito que um dia nos encontraremos novamente— relata Gabriela, que hoje é quem cuida do neto, que está com seis anos; a menina, que hoje tem três, está com um dos tios, embora o convívio de toda família seja frequente, até mesmo como uma forma de superar a dor que têm em comum.
— Para minha mãe é como ter uma parte da Ariana com ela. E meu irmão, que não tem filhos, desde o início se disponibilizou em cuidar dela (da menina). Ela chorava muito no início, porque ainda mamava e também percebia a dor das pessoas. O meu sobrinho foi o mais afetado. Ele presenciou a mãe gritando por socorro, rasgando a roupa enquanto minha mãe tentava ajudar sem entender o que estava acontecendo. E até agora, quando é Dia das Mães, essas coisas, ele sente muito — relata a tia das crianças, uma das primeiras irmãs de Ariana a vir para o Brasil, Joswinda Gabriela Ávila Figuera, 37.
Traduzindo o idioma e também o sentimento da família em relação à perda de Ariana, Joswinda falou sobre o choque sofrido quando a polícia indiciou o ex-namorado da irmã.
— Somos imigrantes, viemos de lá (da Venezuela) com problemas sociais e econômicos, para fazer uma nova vida. Ela tinha muitos sonhos. Quando ele começou a ir atrás dela, não imaginávamos que poderia chegar a este ponto. Nossa cultura é muito diferente, por exemplo, quando você não quer relacionamento com um homem, ele simplesmente vai embora. Quando aconteceu isso ficamos em choque. Isso não é nem amor, é obsessão — conclui.
Outro julgamento recente, em agosto deste ano, condenou, também a 17 anos de reclusão, Marcos dos Santos pelos crimes de feminicídio e ocultação de cadáver. O crime aconteceu na madrugada de 12 para 13 de dezembro de 2019, no apartamento em que ele morava havia cerca de 10 meses com Maria Dalila Oliveira de Moura, vítima do crime, que tinha dois filhos. O pai não teve condições de ficar com a guarda do menino de nove anos e da adolescente de 15, o que fez com que fossem encaminhados para viver com um familiar, em outra cidade.
— É como se fosse uma nova etapa na qual o sobrevivente abandona toda vida que conhecia e começa uma outra — observa a promotora Graziela.
Segundo ela, assim como ocorre com crimes de homicídio, o luto em casos de feminicídio costuma estar acompanhado por sentimento de dor, revolta, medo, culpa e a raiva.
— Em casos nos quais o pai mata a esposa ou ex-esposa, há frequente narrativa de medo, porque são crianças que viram a violência doméstica ao longo de toda a vida. Até mesmo homens adultos chegam a ter medo do pai. É emblemático como há uma submissão àquela relação violenta, assim como filhas que, após o ocorrido, se afastam do pai — completa.
A promotora afirma que não há um fluxo ou protocolo específico de encaminhamentos para estes casos, sendo o atendimento a vítimas e familiares dado conforme as necessidades, o que inclui atendimento psicológico, abrigamento e outras situações tratadas nas promotorias de proteção a crianças e adolescentes.
Ela destaca que a maioria dos casos em Caxias nos últimos tempos não possuía medida protetiva vigente, instrumento que garante a prisão rápida do agressor quando ele descumpre a ordem judicial. O encaminhamento pode ser feito a partir do momento em que a vítima detectar sinais como prepotência, abuso, ciúme desmedido ou estiver sofrendo ameaças.
— Existem sinais que a vítima não deve desconsiderar, deve levar a sério e se proteger — reforça a promotora.
Sofrimento agravado
A psicóloga Raquel Furtado Conte afirma que as consequências psicológicas para as crianças que vivenciam a violência doméstica e contra a mulher são várias, desde a timidez e apatia até a automutilação, ideações e tentativas suicidas.
— Os familiares que precisam conviver com o feminicídio sofrem duplamente com a perda, uma vez que além de precisar lidar com a ausência da figura materna/afetiva, precisam ressignificar os vínculos permeados pela naturalização da violência — observa a psicóloga.
Como professora na Universidade de Caxias do Sul, Raquel coordena a disciplina Laboratório de Práticas Psicológicas II, em que estudantes atendem a grupos de mulheres que passaram ou estejam passando por violência doméstica. Ela reforça que, mesmo nos casos onde o feminicídio não chega a ser consumado, identifica-se profundos impactos na vida de vítimas e também no núcleo familiar envolvido.
— Dentre os impactos psicológicos da violência doméstica contra a mulher, a literatura apresenta os transtornos depressivos, de ansiedade, transtorno do pânico, transtornos pós-traumático, ideações suicidas e tentativas de suicídio — complementa.
Segundo dados estaduais, o número de tentativas de feminicídio no RS chega a 156 nos primeiros oito meses de 2022, sendo 23 somente em agosto — o mês com maior número de registros.
— Estudos com essas vítimas indiretas do feminicídio apontam que elas apresentam uma tentativa de refazer novos modelos de relação, a partir da desnaturalização da violência. Esse seria um aspecto favorável, para iniciar a reflexão e o rompimento de vínculos que aprisionam e matam — conclui a especialista.
Projetos de amparo
:: Vítimas de delitos sofridos em Caxias do Sul contam com um programa de amparo realizado pela Promotoria de Justiça em parceria com a Polícia Civil e o Poder Judiciário locais. Também aberto a familiares de vítimas de feminicídio, o projeto Nêmesis disponibiliza atendimentos gratuitos para orientação referente aos trâmites processuais e encaminhamentos feitos pela via judicial. O contato para agendamento pode ser feito pelo WhatsApp (54) 99600-9932.
:: O atendimento às vítimas de violência doméstica realizado pelos estudantes da UCS funciona junto ao Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade de Caxias do Sul (UCS) no Bloco E, andar térreo, nas sextas-feiras, das 14h às 16h30min. Os atendimentos são abertos à comunidade, porém, há um acolhimento inicial para identificar e compreender as demandas, uma vez que é um laboratório que atende exclusivamente casos de violência contra as mulheres. O acolhimento funciona das 14h às 15h e, nesse mesmo horário ocorre um grupo de reflexão com as mulheres que vivenciaram a violência.
:: Em casos de reincidência, homens acusados de violência doméstica são encaminhados pelo Juizado da Violência Doméstica de Caxias do Sul ao H.O.R.A (Homens: Orientação, Reflexão e Atendimento). Conduzido pelo Juizado e coordenado pela psicóloga Maria Elaene Tubino, o H.O.R.A atende 60 homens atualmente. Depois de comparecer e ser acolhido no primeiro encontro, ele opta por continuar frequentando o projeto. Foram mais de 1,3 mil homens atendidos desde a implantação do projeto, em 2014.