Cinco mulheres foram assassinadas por maridos ou ex-companheiros em Caxias do Sul neste ano. Duas delas, Jussara de Souza Oliveira, 51 anos, e Marivane Geraldina Cavalheiro de Oliveira, 49, tinham medidas protetivas em vigor quando foram mortas, em agosto e abril de 2022. No caso mais recente, pelo relato de familiares, a vítima reatou com o autor do crime, depois dele sair da prisão, em abril. Ele havia sido preso em janeiro por desrespeitar a medida protetiva ao tentar se aproximar dela.
O casal, segundo relatos da família à polícia, tinha um relacionamento conturbado. Eles haviam rompido novamente há cerca de dois meses e, no dia 27 de agosto, um sábado, pouco antes de ser assassinada, Jussara procurou a Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA) para registrar a ocorrência. Segundo a polícia, a Brigada Militar (BM) procurou pelo homem, mas não o encontrou. No caso de Marivani, conforme a Polícia Civil, ela também teve uma medida protetiva de urgência contra o marido decretada em abril. A ordem judicial, contudo, foi retirada a pedido da vítima, que reatou o relacionamento e voltou a morar com ele.
O titular do Juizado da Violência Doméstica, Luis Filipe Lemos Almeida, aponta que a medida protetiva é um instrumento eficaz e que garante a prisão rápida do agressor quando ele descumpre a ordem judicial. Contudo, como no caso de Jussara, outras mulheres nem sempre conseguem buscar ajuda a tempo. Isso pode levar à percepção que a decisão judicial, que determina que o agressor não se aproxime e prevê prisão caso ele desrespeite a medida, não é capaz de proteger as mulheres.
— A medida protetiva não vai impedir que a mulher seja esfaqueada, alvejada por tiros, perturbada ou perseguida. A importância da protetiva está nessa sinalização do Judiciário de que a vítima está sob a nossa tutela, e a partir de agora qualquer violação leva para a prisão. Ela sinaliza para o agressor que ele não pode manter contato — explica o titular do Juizado da Violência Doméstica, Luis Filipe Lemos Almeida.
O juiz complementa que percebe muitas vezes que a vítima não tem a compreensão da gravidade de alguns fatos. Ele salienta que, se comparado o índice de protetivas emitidas e revogadas com o número de feminicídios em que há protetiva, a porcentagem é baixa.
— Via de regra, essa violência na relação familiar não encaminha para um feminicídio. Felizmente, é uma exceção — aponta.
Em 2022, apenas três casos de desrespeito a medidas protetivas não tiveram prisão com a representação do Ministério Público (MP) e da Polícia Civil porque os réus ainda não haviam sido intimados das proibições. De janeiro até 9 de setembro deste ano foram 1.978 registros de medidas protetivas. Destas, 597 estão em vigor.
Reeducação do agressor pode ser uma alternativa
Para o titular do Juizado da Violência Doméstica, um exemplo de ferramenta que combate a violência doméstica e pode ajudar a evitar o feminicídio é o projeto H.O.R.A (Homens: Orientação, Reflexão e Atendimento). Ele explica que, geralmente, ocorre reincidência nos casos de violência, em que o agressor tem de duas a quatro passagens e sucessivos pedidos de revogação da ordem judicial. Mas, com o acompanhamento, essa realidade muda. Antes da pandemia, os dados apontavam que cerca de 3% dos homens que passaram pelas sessões reincidiram, mas sem agravar o crime.
Conduzido pelo Juizado e coordenado pela psicóloga Maria Elaene Tubino, o H.O.R.A atende 60 homens atualmente. Maria explica que, quando a vítima solicita uma medida protetiva, o juiz determina a presença do homem no projeto, enquanto a mulher é encaminhada para uma reunião de avaliação de risco. Depois de comparecer e ser acolhido no primeiro encontro, ele opta por continuar frequentando o projeto. Foram mais de 1,3 mil homens atendidos desde a implantação do projeto, em 2014.
— A gente trabalha a auto responsabilização nas relações: "eu sou responsável por mim, eu decido o tipo de relação que quero desenvolver". E todos os encontros têm uma temática. Acredito nesse projeto, como acredito em respirar. Acho que o único jeito de mudar a mentalidade é partir para uma discussão educacional — aponta a psicóloga.
Ao final do 10º encontro é remarcada uma reavaliação para 60 dias.
Protetiva é um instrumento para cessar a violência
A coordenadora regional do Grupo Especial de Prevenção e Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Gepevid) e titular da 2º Promotoria Criminal de Vacaria, Bianca Acioly de Araújo, ressalta que a medida protetiva permite afastar quem causa a violência. A partir da ordem judicial, a vítima e o agressor são lembrados de que não podem mais se aproximar. Ela aponta, no entanto, que por ser um relacionamento com sentimentos, frequentemente os casais retomam o convívio.
Para ela, é preciso um olhar atento, tanto para a mulher quanto para o homem para que se evite essa aproximação e a escalada da violência, que pode levar ao feminicídio.
— O formulário permite avaliar os potencializadores de uma violência grave e letal. A partir do momento em que a rede de apoio à vítima tem essa visão é possível direcionar as mulheres para as políticas públicas de atendimento. Com ele, é possível traçar estratégias de prevenção para tentar evitar um episódio mais grave, como o feminicídio — afirma a promotora.
Bianca lembra que a medida protetiva concedida, por si só, não gera um escudo para a vítima, mas é um sinalizador.
— Ela não gera uma barreira para que agressor não se aproxime, mas é um dos poucos instrumentos que o Estado pode agir preventivamente. Ela é um sinalizador e cabe à rede de proteção orientar a mulher que ela corre riscos, para que ela tenha consciência de que precisa comunicar o descumprimento da medida. Ela precisa comunicar que ele se aproximou e avisar o sistema da Justiça que esse alerta vermelho foi dado.
Ciclo de violência
A relação abusiva é definida como aquela que envolve aspectos emocionais, físicos e na qual há necessidade de controlar ou de manipular o outro. Esses jogos de poder envolvem ameaças e vitimização, segundo a psicóloga Isabel Fedrizzi Caberlon. Ela destaca que geralmente esse homem seduz a mulher, que é envolvida cada vez mais, e até justifica o comportamento abusivo dele. Esse casal, inclusive, viveu situações em que esse tipo de abuso era tolerável, especialmente na infância.
Em muitos casos elas desconhecem a rede de proteção e, em outras situações, até mesmo revogam as medidas protetivas por medo de ameaças do namorado ou marido, especialmente, ainda mais se ela depender dele financeiramente. Nesses casos, o agressor mantém a mulher acuada dentro de casa.
— Elas não conseguem fazer esse movimento de cortar o laço porque estão presas nesse jogo de poder e controle. E onde há poder e controle não tem amor. Essa mulher precisa de ajuda psicológica para se libertar e é preciso coragem, além de suporte familiar, de amigos e desse respaldo jurídico para sair do ciclo da violência.
Até julho, foram registrados 2.090 boletins de violência contra mulher
Em Caxias, até julho de 2022, foram registrados 2.090 boletins de ocorrência de violência contra a mulher. Destas, 1.042 vítimas solicitaram medidas protetivas de urgência. Durante o Agosto Lilás, oito homens foram presos por descumprir ordens judiciais.
— A orientação da delegacia é que as vítimas não peçam a revogação das medidas protetivas de urgência, que isso apenas ocorra perante um juiz, o que também não garantirá nada, mas fará com haja um maior compromisso de ambas as partes e a ciência das consequências — ressalta a delegada Aline Martinelli, titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher.
Sobre o assassinato de Jussara, a delegada ressalta que ela registrou novo boletim de ocorrência no sábado, dia 27, antes de ser morta, mas o suspeito não estava no local. Por isso, seria necessária uma nova ordem judicial para decretar a prisão, uma vez que ele não se encontraria em situação de flagrante.
Patrulha Maria da Penha
Quando acontece uma ocorrência referente à Lei Maria da Penha e a polícia é acionada, a viatura mais próxima do endereço atenderá a ocorrência. Na delegacia, é feito o registro, a vítima pode solicitar medidas protetivas e, caso elas sejam deferidas, são encaminhadas para a Patrulha Maria da Penha. Desde que foi implantada, em 2012, nenhuma mulher acompanhada pela equipe foi vítima de feminicídio. Atualmente, 53 vítimas de violência doméstica contam com esse suporte.
— A patrulha passa a fazer visitas a essa vítima para que a medida protetiva seja cumprida. A equipe se certifica de que vítima está bem, confere se o agressor não descumpriu a medida, para garantir que essa mulher está segura — explica a tenente Mileide Ramos.
ONDE BUSCAR AJUDA
:: Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam): (54) 3220-9280
:: Patrulha Maria da Penha: (54) 98423-2154 (o número está disponível para ligações e mensagens de WhatsApp)
:: Central de Atendimento à Mulher: telefone 180
:: Coordenadoria da Mulher: (54) 3218-6026
:: Centro de Referência para a Mulher: (54) 3218-6112