À medida em que descascava o caqui de chocolate, lembrava da percepção de um amigo relacionando sabiá-laranjeira à fruta como sendo o combo uma representação de Caxias do Sul. Achei a maior graça ao encontrar um furinho perto das folhas do topo, com uma pequenina minhoca pendurada nele, uma visão quase poética da natureza e a síntese da realidade em um pequeno gesto: o que a gente imagina, muitas vezes, está bem distante do que vê. Eu já deveria ter me acostumado.
Sendo assim, cuido para não evocar o clássico da Marina Colasanti, o inevitável caso de que a gente se acostuma, mas não devia. A gente já se acostumou a ter medo da chuva, cada vez que pequenas gotas começam a cair no céu. Se há um mês era delicioso dormir escutando o som dos pingos escorrendo pelo vidro, isso se desfez junto com a tragédia que assola o Estado. E talvez a sensação de prazer efêmero associada à precipitação nunca mais apareça. É possível que algumas crianças não se divirtam mais pulando poças d’água nem usem botas de chuva como meros acessórios lúdicos e coloridos para ir à escola. Serão — já são! — lembranças de um outro tempo, quando a pior catástrofe climática não tinha acontecido no Rio Grande do Sul e virado assunto onipresente desde então.
Vai ser preciso se acostumar às mudanças climáticas, apesar dos discursos negacionistas, e no meio de tanta perda e tanta tristeza, talvez tenhamos que forjar uma nova normalidade em meio a aquilo que jamais voltará a ser como era. Não imagino a dor de quem perdeu pessoas queridas ou bens em meio à enxurrada — embora saiba que comparar vidas e coisas não faça nenhum sentido. A mim, já dói o suficiente saber que todo o esforço da vida de alguém, literal e metafórico, se esvaiu em um apanhado de horas.
E também sinto ao ver imagens de fotografias e documentos que começam a aparecer quando a água voltou ao nível normal. A chuva levou embora até os pequenos fragmentos de memórias alheias que nunca voltarão aos seus donos. Não tem como reconstruir um bilhete recebido do avô, a fotografia de infância da mãe, a carta do primeiro namorado, o espelho que pertenceu à bisavó...
A enxurrada não só chegou de maneira avassaladora levando aquilo que era concreto, mas também devastou o simbólico. Casa, camas e fogões voltarão a existir, mas ficará faltando a parte lírica que ajuda a acessar quem somos. Marina versou que “a gente se acostuma para poupar a vida”. Nesse caso é o inverso: a vida que não tem nos poupado e estamos sendo obrigados a nos acostumar.