Se eu perdesse a memória e te perguntasse, o que tu contarias a meu respeito para mim mesma?
Fiz esse questionamento em uma caixinha de perguntas no Instagram em um dia qualquer dessa semana. Pretendia usar o experimento como material para a crônica, e a interatividade ficou bastante divertida. Não estou com crise de identidade, mas acho interessantíssimo saber o que de mim toca o outro. Dá para fazer uma série de inferências sobre o assunto, mas a mais óbvia reforça uma das principais crenças que tenho na vida: somos o que deixamos. Já escrevi que só existimos nas interações e é exatamente assim.
Vou exemplificar: há quem se lembre de mim como fã do Bon Jovi, meu crush na adolescência (e que envelheceu lindamente). Bon Jovi, por sua vez, tornou-se um portal na minha vida. Raramente o ouço, mas quando o faço, parece que tenho 16 anos e estou cheia de curiosidade pelo futuro. Fui a dois shows dele em um intervalo de uma década e, mesmo sem escutar as músicas há muitos anos, conseguia cantar todas, me emocionei, aproveitei o momento em homenagem ao que fui e ao que me tornei. Então, é até legítimo pensar em mim a partir dele. Mas também é reducionista.
Tem quem me imagine uma pagodeira inveterada, já que adoro sair para dançar e sou fã do Bar do Luizinho. Até quem não interage tanto comigo deve ter visto alguma postagem minha lá, curtindo o momento. Já uma das minhas grandes parceiras de pagode e minha melhor amiga desde a barriga das nossas mães me vê como a pessoa mais romântica que ela conhece – talvez por ser o contraponto absoluto dela –, daquelas que acreditam no amor. Errada não está.
Há quem me veja como uma pessoa sorridente, que escreve bem e que contempla a beleza na trivialidade. Há quem exagere um pouco e evoque o realismo mágico e a forma de contar histórias ao vivo como sendo uma das minhas características mais marcantes, já que gosto de contemplar muitos detalhes. Ninguém disse que sou braba ou meio destrambelhada, que derrubo objetos, me bato nos cantos dos móveis, demoro bastante para lavar a louça ou detesto fazer trilha. Não contaram que coleciono Smurfs, gosto de trabalhos manuais e sou superafetiva. Que basicamente só compro livros, sapatos e presentes, que a maior semelhança entre mim e minha irmã é sermos preocupadas com as pessoas.
Esse é o exercício que pouco fazemos: vemos uma pequena parte da criatura ao nosso lado, às vezes o que ela está disposta a mostrar e achamos que isso é tudo. Saber o que está por trás disso leva tempo e precisa de dedicação, inclusive para ficar. Estive na Gramado Summit e percebi a sutileza que permeia o aparentar e o ser. Ou como o ser é mutável – talvez essa seja a definição mais precisa, já que nem todo mundo finge ser o que não é, mas ainda assim não é definitivamente sempre igual.
Ao assistir à fala de Gilberto Silva fiquei impressionada sobre o nervosismo que o paralisou por cinco minutos em cima do palco – não dá para imaginar que alguém que jogou a final da Copa do Mundo (e ganhou!) vai sucumbir a algum tipo de pressão. Mas o vi sofrer bem na minha frente. No mesmo palco, vi a apresentação de Jakson Follmann, um dos sobreviventes do voo da Chapecoense. Depois de exibir em um telão os áudios que precederam a queda do avião, ele entrou cantando Tente Outra Vez, do Raul Seixas. Impossível não ficar arrepiada. Impossível não lembrar dele apenas naquele momento, como se só existisse a partir daquela apresentação. Nas falas de gratidão e na consciência de ser um milagre. Para mim, ele ficou eternizado em uma frase, que talvez não o defina de verdade, mas é como ele ficará guardado em mim: a vida só é bonita para quem vê beleza nela. Talvez esse também seja o segredo de quem vê beleza nos outros.