Leio maravilhada a história da carta de Cícero que Gaudêncio guardou intacta por décadas, até conseguir aprender a ler. A palavra que resta, de Stênio Gardel, revela uma história de amor, daquelas que não se acabam — se é que alguma história de amor chega mesmo ao fim.
Coincidentemente, logo depois de terminar o livro, fico sabendo da morte de Antonio Cícero, o erudito poeta popular que decidiu por um final assistido. E, com isso, um dos poemas icônicos escritos por ele, Guardar, ganhou bastante visibilidade em posts e jornais.
Um dos trechos que mais gosto diz:
“Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.”
Não é exatamente isso que devemos/deveríamos fazer com a vida? Vivê-la e celebrá-la, da ida à padaria a descoberta de um novo amor? “Estar vivo é ser palavra na boca de alguém”, versa Socorro Acioli, em Oração para Desaparecer. É a lógica do poeta erudito: é para guardar algo que se escreve, se diz, se publica. A gente guarda o que tem coragem e disposição de contar, o que a gente divide.
Nenhuma memória, mesmo as mais importantes, sobrevivem sem serem revisitadas. E, se não forem, acabam dissipando-se.
Depois de um tempo, a gente precisa aprender a sublimar as dores. Em um único dia do noticiário dá para termos ideia da efemeridade da vida, da maldade humana, da incapacidade de diálogo, da banalização dos problemas, das soluções que não resolvem. E isso não dá para mudar.
O que muda é a gente se esforçar para achar sentido e motivos para seguir. Coisas e pessoas para guardar. Gente para nos mostrar o melhor dos dias, gente que não tenha medo de dizer que gosta ou de enfrentar as próprias idiossincrasias.
Daquele que é palavra boa na boca de alguém, que provoca um sorriso de canto de lábio quando um nome é proferido, que ajuda a guardar o caminho na vida — na dele e na da gente mesmo.