Coloco na conta da minha mãe o fato de eu ter me transformado em uma mulher destemida. E, como numa epifania, meses atrás, a milhas de distância de casa, soube que jamais teria condições de desbravar o mundo (de forma literal ou metafórica) se não fosse por ela. Celebro, então, a força e o estímulo da mulher que me gerou e segue semeando o melhor dentro de mim. Em nome da minha mãe, estendo felicitações a todas mulheres maravilhosas que tornam o cosmos um lugar com gente melhor.
Essa coragem que me leva a tomar decisões importantes e a lidar com as consequências é, também, um paradoxo. Isso porque eu morro de medo de um monte de coisas: de gostar demais, de não demonstrar afeto suficiente, de deixar de gostar, de perder as pessoas que amo, de não conseguir estar presente, de precisar reivindicar a presença, de não conseguir desligar, de dever explicações, de não poder explicar, de ser injusta, de ser omissa. Atualmente, tenho muito medo da chuva, dos estragos, do caos instaurado, das consequências coletivas na saúde mental, da dificuldade de reconstrução dos espaços. Mas como quase todo mundo, eu sigo. Simplesmente sigo, enfrentando todo o desconforto sem me deixar paralisar.
Tenho vontade de reclamar do tênis azul-marinho desbotado, sem cadarços e com rasgos no calcanhar deixado em uma pilha de objetos doados a vítimas da enchente no Seminário Nossa Senhora Aparecida. Assim como esse, há centenas de itens sujos, furados, com cheiro de xixi e sem condições de uso, mas que são descartados travestidos de doação por pessoas que se dizem preocupadas em ajudar o próximo. Tenho vontade de reclamar dos que adoram espalhar fake news em meio à maior tragédia do Estado. Ou daqueles que roubam os voluntários que estão tentando salvar vidas. Ou dos empresários que aumentam o preço de insumos, água e alimentos, aproveitando a lei da oferta e procura. Do quanto as pessoas podem ser cruéis. Morro de medo de desviar o foco do que realmente importa nesse momento: o resgate das vidas, a dignidade do encontro dos mortos para que sejam velados, a informação precisa, a união para a reconstrução. Dos incansáveis que estão na linha de frente, dos que atuam nos bastidores, dos que usam a força física, dos que contribuem com a força das orações. Dos que se sensibilizam e agem.
Morro de medo de banalizar os acontecimentos, de errar o tom das conversas. Nessa última semana de catástrofe, consegui ter um momento bem especial (coisa certa no tempo errado, como tantas vezes) no meio desse caos. E morro de medo que ele se dilua. Vejo famílias inteiras perdendo tudo, lembro d’O Peso do Pássaro Morto e da síntese na orelha do livro da Aline Bei: “quantas perdas cabem na vida de uma mulher?”. Lembro que a arte sempre pode ser um refúgio, mesmo que pareça não fazer sentido agora.
Talvez minha coragem esteja nisso: flerto com meus medos, mas os enfrento. Às vezes, dou uma chorada para aliviar a alma, lembro que muita gente veio antes, me permitiu estar aqui, tomar minhas decisões e encarar as dificuldades. Sei que o espírito de coletividade e ajuda mútua são maiores do que qualquer pequena desgraça que possa me assolar e, assim, continuo. Destemida – como minha mãe ensinou.