Ninguém me contou, eu mesma testemunhei o seguinte fato na calçada da praia onde veraneio na manhã de 31 de dezembro de 2022: um senhor de 60 e poucos anos falava alto ao telefone frases como “Não é possível Sério! O exército está nas ruas?” e “Já tomaram Brasília? Que maravilha!”. Estando num pacato balneário do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, muito provavelmente alheio ao jornais e ao noticiário da “mídia tradicional comunista”, é óbvio que ele não tinha como confirmar a verdade com seus próprios olhos. Nem o exército estava nas ruas, nem havia em Brasília um governo paralelo comandado pelo General Heleno como diziam as mensagens em seus grupos de WhatsApp, notícias falsas que circulavam livremente nas redes dos apoiadores fanáticos do ex-presidente Jair Bolsonaro.
É tudo muito surreal: como senhores e senhoras sexagenários foram tão facilmente cooptados pelo bolsonarismo a ponto de alguns irem de ônibus até a capital federal participar de atos de destruição e de vandalismo no dia 8 de janeiro? Como puderam cidadãos antes totalmente pacatos e cumpridores da lei e da ordem se unir a uma horda de baderneiros e vilipendiar os símbolos máximos dos Três Poderes da República: Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e Palácio do Planalto? Diante de uma suposta tentativa de golpe de estado, muitas dessas pessoas, neste exato momento, encontram-se detidas pela Polícia Federal ou respondendo a processo judicial, enquanto familiares tentam em vão resgatá-los do que claramente se tornou uma seita política.
Radicalização e cegueira ideológica também existem dentro dos quadros da esquerda, mas de certa forma são novidade na direita, especificamente nesse grupo etário. O fanatismo que sequestrou esses indivíduos resulta talvez da falta de senso crítico, mas em grande parte se deve a questões de inteligência emocional. Nos piores casos, é uma soma de ambas as coisas: sem informação, conhecimento e discernimento, muitos se tornaram presas fáceis de fake news. O aparato psicológico e emocional fragilizado, pouco preparado para lidar com a adversidade e o diferente diante das constantes e rápidas mudanças na sociedade neste século 21, foi terra fértil para políticos, charlatões, influenciadores e gurus semearem um discurso virulento de “nós contra eles”.
Não é difícil imaginar quantos indivíduos na pandemia recorriam a grupos de WhatsApp para ter companhia durante o isolamento, principalmente os mais velhos. Afastados de filhos e netos, longe do círculo social presencial, tinham nas notificações de seus celulares o alento de que não estavam sós. As mensagens condizentes com uma forma de pensar e de ver o mundo supostamente alinhada com seus valores — pátria, família, trabalho, liberdade — traziam o conforto do refúgio da concordância, do pertencimento, da inclusão. Ser chamado de patriota era como vestir uma farda e receber uma condecoração, retomar para si uma relevância que parecia ter sido perdida quando foram praticamente excluídos da sociedade, fosse pela vulnerabilidade diante da doença durante a pandemia, ou pelo etarismo e consequente afastamento do mercado de trabalho.
De certa forma, essas pessoas foram marginalizadas no sentido mais estrito da palavra, colocadas de fato à margem dos acontecimentos, e depois impedidas por uma força maior — a covid-19 — de participar do pleno e saudável convívio social. E quem estava lá desde a campanha de 2018 para lhes estender a mão? Justamente os chamados “grupos das tias do Zap”.
Por isso sempre senti pena ao ver essas pessoas acampadas em frente aos quartéis: muitas realmente achavam que estavam salvando o Brasil, totalmente alienadas e desconectadas do mundo real. Manipuladas e inflamadas por gente que ganhou muito dinheiro vendendo uma ideia, cortaram laços familiares, transformaram quem tinha opiniões diferentes em inimigos e traidores, deixaram o medo e a raiva tomar conta de seus pensamentos e de suas atitudes. O resultado foi o que presenciamos naquele domingo.
É no mínimo curioso como a radicalização de seus ideais levou essas pessoas a agirem contra seus próprios princípios de ordem, respeito às leis, segurança e cumprimento do dever. Também é válidos observar que, há muito tempo, acontece a mesma coisa com a esquerda: prega a democracia, mas por ideologia defende ou releva ditaduras indefensáveis; prega a tolerância e se demonstra extremamente intolerante com quem não segue sua cartilha à risca. O fanatismo corrompe até mesmo os valores mais caros e justos não só de uma pessoa, mas dentro de uma sociedade.