Um órgão que é porta de entrada para a rede de proteção a mulheres vítimas de violência — a 1ªDelegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), em Porto Alegre — enfrenta dificuldades para atender devido à falta de efetivo.
O Grupo de Investigação da RBS (GDI) apurou que no plantão diurno do último domingo, dia 31 de março, por exemplo, quatro mulheres desistiram de registrar ocorrência por causa da demora. Estavam na fila outros cinco casos com suspeitos detidos pela Brigada Militar (BM), situações que têm preferência de registro.
Os atendimentos no plantão da delegacia têm ordem de prioridade: primeiro, ocorrências que tenham suspeito conduzido pela BM e que podem resultar em prisão em flagrante, o que torna o procedimento bem mais demorado. Depois, casos em que policiais militares chegam só com as vítimas. Por último, ficam as situações em que as mulheres procuraram sozinhas a delegacia para relatar algum problema — e são justamente vítimas deste grupo que têm ido embora sem o acolhimento prometido pelo Estado.
Apesar de o enfrentamento à violência contra a mulher ser tratado como assunto de destaque pelo governo, a Deam teve, desde o ano passado, redução de efetivo, e quem atua no plantão relata uma série de dificuldades de estrutura básica, como problemas no funcionamento de banheiros, falta de papel higiênico, impressoras estragadas e falta de água para as vítimas. O local não tem bebedouros e a água mineral é comprada pelos próprios policiais.
As desistências ocorridas durante o plantão de domingo (entre 8h e 20h), assim como a falta de água para vítimas beberem e o relato sobre uma impressora estragada, estão comunicados na resenha de fechamento do trabalho. No plantão diurno de domingo, havia três policiais atuando e foram recebidas 18 ocorrências ao longo de 12 horas.
Em meados de maio do ano passado, as equipes plantonistas tinham cinco policiais. Com perda de pessoal, o grupo para atender a cada 12 horas passou para quatro. Com férias, afastamentos e outros imprevistos, ocorre de ficarem apenas três policiais atendendo. Ou até dois.
As dificuldades para dar conta das demandas envolvendo mulheres vítimas também atingem a BM: no domingo, uma mulher que havia sido encaminhada à Deam por policiais militares teve de esperar seis horas para ser levada de volta para casa depois de registrar a ocorrência. O acompanhamento das vítimas de volta à residência é uma medida de proteção, já que aquela mulher está em situação de risco. Mas a Deam não tem equipes volantes para fazer isso, e a BM depende de disponibilidade de guarnições.
O GDI verificou que desde o final do ano passado, episódios de desistência das vítimas têm se repetido, o que é visto como grave por policiais, pois nem todas conseguem retornar.
— A pessoa que busca o atendimento se encorajou, quebrou uma barreira, mas vai ali, não consegue registrar e vai embora. Quantas têm ânimo para voltar? — comenta um policial que não quis se identificar por medo de represálias.
Situação provocou bate-boca entre PMs e plantonistas
Em 18 de março, apenas dois policiais estavam disponíveis para o atendimento no plantão durante o dia. Um agente de outra equipe foi chamado para ajudar. As desistências não foram colocadas na resenha, mas teriam sido, ao menos, sete, segundo relatos obtidos pelo GDI.
No plantão noturno da quinta-feira, 7 de março, 15 ocorrências foram registradas, sendo três com prisões em flagrante. Havia três policiais de plantão.
"Equipe reduzida com apenas três plantonistas, um plantonista no balcão não conseguindo registrar ocorrência devido à demanda de atendimento. Apresentação de ocorrências desproporcional em relação ao efetivo desta noite, incontáveis desistências de registro". Essa foi a informação colocada no resumo do turno de 12 horas.
Na primeira quinzena de fevereiro houve um plantão com 18 ocorrências, sendo 11 delas com a presença de suspeitos e com oito casos transformados em prisão em flagrante, que é um procedimento, por si só, mais demorado em função das peculiaridades. Neste dia, havia quatro policiais trabalhando e, pelo menos, três vítimas desistiram de registrar ocorrência, conforme o GDI apurou. Em 10 de fevereiro, um plantão de 12 horas da Deam recebeu 27 casos para registrar, sendo que em 13 havia suspeito conduzido pela BM. Cinco situações se transformaram em flagrantes. Uma impressora não funcionava naquele dia.
O atendimento à mulher é diferenciado, precisa de local, de gente e de ambiente favorável.
ISAAC ORTIZ
Presidente do Ugeirm-Sindicato
Em dezembro, a demora nos procedimentos em função do excesso de ocorrências e pouco pessoal causou até bate-boca entre policiais militares e civis, assustando mulheres que esperavam atendimento. A BM chegou a enviar ofício à Polícia Civil relatando situações de flagrantes que demoraram até 12 horas para serem concluídos.
— O problema na Deam é dramático. O número de ocorrências demandado das equipes de plantão é grande. É um caos. Não tem espaço para deixar os presos, que ficam em viaturas. Tem essa questão familiar, que envolve a mulher, o companheiro, pai, filhos. O atendimento à mulher é diferenciado, precisa de local, de gente e de ambiente favorável. O prédio está em ruínas, não tem condições. Já havíamos cobrado da chefia (de Polícia) e prometeram mudar a Deam para outro prédio, além de criar a 2ª Deam. Mas não foi feito. É uma falta de comprometimento do governo com a criação dessa delegacia e para ter local adequado para atender — disse Isaac Ortiz, presidente do Sindicato dos Agentes da Polícia Civil-RS (Ugeirm-Sindicato).
Em 8 de março do ano passado, o governo anunciou que em maio de 2023 seria inaugurada a 2ª Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, o que ajudaria a desafogar o trabalho na 1ª Deam e facilitaria atendimentos para quem vive na Zona Norte. Até hoje, no entanto, a delegacia não funciona. A 1ª Deam acaba recebendo toda a demanda da Capital e, muitas vezes, casos da Região Metropolitana. Em 2023, 13 mil mulheres registraram ocorrência em Porto Alegre, conforme dados divulgados pela Polícia Civil em 8 de março, Dia Internacional da Mulher.
O que diz a Polícia Civil
Questionado sobre se tinha conhecimento de problemas decorrentes da falta de efetivo na Deam, o diretor do Departamento de Proteção dos Grupos Vulneráveis (DPGV), delegado Christian Nedel, disse que não falaria sobre questões internas. Ele informou que trataria com a direção da Divisão de Proteção à Mulher — a divisão é subordinada ao DPGV — para ajustar o que tivesse de ser ajustado.
A delegada Cristiane Pires Ramos, titular da Deam e diretora da divisão, está em licença-saúde e preferiu não se manifestar sobre os problemas no plantão. Mas destacou que no primeiro trimestre deste ano houve mais prisões em flagrante, mais pedidos de medidas protetivas de urgência e mais ocorrências registradas em relação ao mesmo período do ano passado.
O Departamento Administrativo da Polícia Civil informou que a abertura da 2ª Deam está prevista para o segundo semestre deste ano.
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