Crime considerado desafio por forças de segurança em diferentes partes do mundo, o feminicídio representa o último ato da violência contra a mulher. Consiste no assassinato em razão do gênero, muitas vezes praticado por atuais ou ex-companheiros. O combate é complexo porque a escalada da violência costuma ser silenciosa, dentro das relações e das casas. Apesar dos desafios, Porto Alegre conseguiu reduzir em quase 80% a morte de mulheres neste contexto em 2023, fruto de trabalho integrado e que acolhe as vítimas, conforme avaliação das instituições da segurança pública.
Neste ano, dois casos ocorreram na Capital, ambos em março. Desde então, mais nenhuma morte foi registrada. Em 2022, no período de janeiro a setembro, nove mulheres haviam sido assassinadas. A redução é de 77,7%. Conforme a Polícia Civil, nenhuma das vítimas tinha medida protetiva em vigor.
No comando da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) da Capital, a delegada Cristiane Ramos lista série de medidas que contribuíram para a redução. Uma das principais é a criação do programa que prevê o monitoramento eletrônico de homens que agrediram mulheres e têm contra si medida protetiva de urgência.
No programa, além de o homem ser monitorado pela polícia, a mulher também consegue acompanhar possível aproximação, por meio de um celular disponibilizado.
— Temos casos que claramente iam resultar em feminicídio, mas que foram evitados graças ao projeto das tornozeleiras. Casos em que o homem descumpriu a medida e se aproximou da vítima, mas em seguida foi localizado e preso, por causa do monitoramento — afirma Cristiane.
Entre esses casos, ela cita o de um homem, monitorado com tornozeleira, que voltou à prisão apenas seis horas após ser solto, por ter descumprido a medida protetiva e se aproximado da ex-mulher.
Preso por agressão contra ela, o homem deixou a cadeia em 23 de junho, mediante monitoramento por tornozeleira eletrônica. Cerca de 30 minutos depois, se aproximou da casa da ex. Foi contatado pela polícia e se afastou do local. No entanto, retornou horas depois e foi detido. Em Canoas, outro homem foi preso após voltar a procurar a ex-companheira 13 dias após colocar a tornozeleira.
A distribuição dos aparelhos é feita a partir de decisão judicial: são os magistrados que irão determinar, caso a caso, quais homens devem ser monitorados e quais devem ser presos, por apresentarem maior probabilidade de cometer feminicídio.
O programa teve início em junho na Capital e em Canoas e segue em expansão, de forma gradual, para todo o Estado. Atualmente, 41 dispositivos estão em operação, nas cidades de Canoas (18), Porto Alegre (17), Pelotas (3), Rio Grande (1), Viamão (1) e Gravataí (1).
Acolhimento 24 horas
Outra medida que ajudou a diminuir as mortes foi a criação de um local de acolhimento, na Capital, que fica à disposição de mulheres 24 horas por dia, sete dias por semana. Inaugurada em novembro do ano passado, a Casa Betânia acolhe vítimas de violência e oferece um ambiente diferenciado, de acordo com a prefeitura. Ali, o objetivo inicial é acolher.
A gente oferece a vaga à vítima. Se ela quiser, é encaminhada diretamente. Depois é que a gente vê o que mais precisa ser feito.
CRISTIANE RAMOS
Delegada da Deam
— Em outros locais, há alguns critérios a serem preenchidos, têm horário de funcionamento, está fechado à noite, por exemplo. Nessa casa, não. A gente oferece a vaga à vítima. Se ela quiser, é encaminhada diretamente. Depois é que a gente vê o que mais precisa ser feito, se ela fica ali, se vai para algum familiar, amigos, os atendimentos que vai receber — explica a delegada Cristiane.
Segundo a policial, antes, as mulheres chegavam a ficar horas na delegacia, onde iam registrar boletim, aguardando para saber se estavam enquadradas nos critérios para locais de acolhimento. Se iam à delegacia de noite, por exemplo, precisavam esperar os locais abrirem, no dia seguinte.
Coordenadora dos Direitos das Mulheres, da prefeitura, Fernanda Mendes Ribeiro explica que a casa também tem outros benefícios. O local foi pensado para abrigar mulheres e seus filhos, caso seja necessário, e também aceita pets.
Diferente da imagem clássica de um abrigo, a casa é ampla, tem pátio, horta e oferece até aulas com um educador físico. As suítes podem abrigar mulheres e filhos de forma separada, oferecendo privacidade.
Fernanda explica que nesse local é possível compreender melhor a situação em que a mulher está inserida, para traçar seus próximos passos.
— O objetivo ali é agilizar, levar ela para a casa e depois resolver as burocracias. Ali, ela passa a ser atendida pela rede de proteção, num local em que se sinta segura. O que ocorre é que muitas vítimas procuram a delegacia relatando alguma agressão, por exemplo, às vezes até leve. Mas ao conversar com essa mulher a gente percebe que ela já passou por muitas coisas que não contou, que suprimiu ou minimizou ao fazer a ocorrência na delegacia, seja por medo ou vergonha. Inclusive, vemos que algumas já passaram até por um “quase feminicídio”, mas não perceberam — explica Fernanda.
A coordenadora afirma que as mulheres acolhidas recebem atendimento de assistentes sociais, psicólogos e orientação jurídica. Essa rede de proteção também é oferecida as que optam por ficar na casa de familiares e amigos.
A Capital conta com outras duas casas de acolhimento a mulheres. No total, são oferecidas cerca de 185 vagas, que podem ser ocupadas pelas vítimas e seus filhos.
Além dos espaços de acolhimento, Fernanda também credita a queda de mortes a demais fatores, como ao fato de que o tema vem sendo abordado de forma cada vez mais aberta e frequente.
— A gente, enquanto sociedade, tem falado mais sobre violência contra a mulher. Nós aqui do departamento somos chamados por empresas, coletivos, há rodas de conversa para disseminar esse assunto, explicar como perceber a violência, o que fazer, como ajudar. Temos visto que boa parte das mulheres, depois de ser atendida pela rede de proteção, não retornou ao agressor. A gente quer seguir mostrando para as mulheres de Porto Alegre que elas não estão sozinhas, que há toda uma rede que dá apoio em diversos casos, além de um acolhimento de verdade — pontua Fernanda.
Casos em Porto Alegre
Um dos casos registrados neste ano ocorreu na noite de 25 de março. A vítima foi identificada como Laila Vitória Rocha Oliveira, 20 anos. Ela teve o corpo atingido com uma espécie de espada e foi encontrada dentro de uma lareira da casa do namorado, no bairro Lomba do Pinheiro.
A jovem era natural do município de Parauapebas, a 706 quilômetros de Belém, no Pará. Ela veio a Capital para conhecer André Ávila Fonseca, 37 anos, com quem tinha começado relacionamento a distância. O homem, que se intitulava nas redes sociais como "mestre bruxo" e “especialista em destruição e vingança", fugiu após a morte, mas foi preso. Ele responde na Justiça por feminicídio.
O segundo caso registrado no ano também ocorreu em março, no bairro Partenon. A vítima tinha 37 anos. A Deam não repassou mais detalhes sobre o assassinato para não prejudicar a investigação, que segue em andamento.
Queda no RS
O crime também está em queda no Estado, segundo o governo gaúcho. No balanço de criminalidade divulgado na quinta-feira (5), os dados mostram que, em setembro deste ano, foram registradas quatro mortes de mulheres, contra seis no mesmo mês de 2022, uma retração de 33,3%.
No acumulado no Estado, de janeiro a setembro, foram 64 mortes de mulheres, contra 83 casos no mesmo período do ano passado, uma baixa de 22,9%.