A Secretaria Municipal de Educação (Smed) de Porto Alegre tentou, na virada de 2022 para 2023, fazer contrato de aluguel de quatro caminhões-baú para desafogar os seus depósitos, que estavam abarrotados pela chegada de cerca de 500 mil livros e outros materiais tecnológicos e esportivos comprados no ano passado, mas foi impedida por uma resolução que bloqueava novos gastos públicos, emitida pelo Comitê de Gestão Orçamentária e Financeira (CGOF). Esse organismo municipal delibera sobre os gastos públicos e é integrado por secretários e servidores do núcleo do governo do prefeito Sebastião Melo.
Uma das consequências disso foi a dificuldade para transportar livros dos estoques para as escolas. Em vez de chegarem aos estudantes, milhares de exemplares, chromebooks (minicomputadores) e aparelhos esportivos permaneceram encaixotados, inclusive em locais úmidos e sujos, sob fezes de animais, como no depósito da Rua Olavo Bilac.
O processo administrativo de locação, analisado na íntegra pela reportagem do Grupo de Investigação da RBS (GDI), começa em 16 de novembro de 2022. O servidor da Smed que fez a instrução do procedimento classificou o aluguel dos veículos como "essencial" e alertou que o contrato dos dois caminhões disponíveis até então terminaria em dezembro. Também foi destacado que a prestadora de serviço da época já havia comunicado falta de interesse em renovar devido aos baixos valores e à alta quilometragem. O mesmo processo pretendia locar duas vans para o transporte de alunos especiais.
"Por conta da dificuldade em atender as entregas diárias, acabamos por atender somente as urgências, criando uma demanda represada por parte do setor de patrimônio. Hoje ocorrem atrasos na entrega de diversos materiais adquiridos devido à essa carência de caminhões e, consequentemente, os nossos depósitos acabam ficando sobrecarregados em diversas ocasiões. A carência de caminhões vem criando problemas técnicos e políticos de diversas ordens com as nossas 98 escolas próprias e 214 conveniadas", diz trecho da justificativa da equipe técnica da Smed.
O documento público, de 21 de novembro de 2022, prossegue: "Esses veículos serão importantes para que a Smed continue atendendo os alunos excepcionais e consiga desafogar os depósitos e dar o devido encaminhamento para os materiais".
A Smed enviou o procedimento à Secretaria de Administração e Patrimônio (Smap), responsável pela realização de licitações. Uma série de ajustes foi feita no termo de referência da contratação, que seria por pregão eletrônico. Foram juntados orçamentos e pesquisas de preços de mercado para itens como combustível e uniforme dos motoristas. O aluguel dos quatro caminhões-baú custaria, em valores estimados, R$ 897,6 mil ao ano. Esse valor representava 2,46% dos R$ 36,5 milhões gastos pela Smed para comprar os livros estocados das empresas Inca e Sudu entre junho e outubro de 2022, a partir de adesões à ata de registro de preço, conhecidas como carona.
Entre 17 e 18 de janeiro, a Smap indica que a documentação está pronta para a elaboração do edital de licitação e que o aumento da frota já poderia ser enviado para aprovação junto ao CGOF, organismo com poderes para deliberar sobre os gastos públicos.
Faltava apenas a anexação de um pedido de liberação para a continuidade da contratação quando aportou no processo administrativo um aviso de servidor da Smed: ele dizia que não estava inscrita no orçamento de 2023 a expansão da locação de veículos com motorista. Somente a vigência do contrato anterior, de dois caminhões, estava prevista. Para a emissão do pedido, destacou, seria necessária uma autorização e indicação de dotação orçamentária.
O documento seguinte do processo administrativo encerrou as pretensões da Smed de alugar quatro caminhões-baú para desafogar depósitos. Trata-se da resolução 001/23 do CGOF, assinada em meados de janeiro pelos secretários do Planejamento e Assuntos Estratégicos, Cezar Schirmer, da Fazenda, Rodrigo Fantinel, e pelo procurador-municipal Cesar Emílio Sulzbach - o último é, atualmente, secretário-adjunto da Saúde.
O documento do núcleo do governo é uma determinação geral e diz que, para manter o "equilíbrio das contas públicas", estavam vedadas cinco formas de despesa: coffee break e serviços de alimentação (exceto gabinete do prefeito); aquisição de gêneros alimentícios e gás de cozinha (exceto Smed e Fasc); doutorado, mestrado, MBA e especializações com recursos do Tesouro; ampliação de frota de veículos locados; e demais despesas não previstas na lei orçamentária de 2023.
A resolução determina: "Pedidos de excepcionalização deverão conter a autorização expressa do senhor prefeito, bem como indicação de fonte orçamentária".
A então titular da Smed, Sônia da Rosa, não enviou o pedido de excepcionalização ao gabinete do prefeito em janeiro, quando o trâmite foi travado. Um servidor da Smed tenta, em fevereiro de 2023, recomeçar o processo ao menos para alugar dois caminhões, mantendo o que a Smed tinha no ano anterior. Novas planilhas de custos são feitas, mas o processo esbarra novamente, em maio, na vedação emitida pelo núcleo do governo.
Somente em 7 de junho de 2023, um dia após a primeira reportagem do GDI mostrar livros e equipamentos empilhados em escolas e depósitos precários, é que a então secretária Sônia encaminha ao gabinete de Melo um pedido de excepcionalização para a ampliação da frota. Não há resposta do prefeito até o final do processo administrativo analisado pela reportagem. Em 26 de junho, uma servidora do gabinete do chefe do Executivo devolveu o processo administrativo para "conhecimento e deliberações que julgar pertinentes" do novo secretário da Educação, José Paulo da Rosa. A essa altura dos fatos, a Smed havia usado caminhões de outras áreas do governo para retirar parcialmente os livros estocados dos galpões precários.
Cronologia
- 16 de novembro de 2022 - Smed abre processo administrativo justificando a necessidade de contratar quatro caminhões-baú para levar materiais estocados em depósitos para as escolas.
- 21 de novembro de 2022 - Servidor da Smed envia ofício ao gabinete da secretária justificando a necessidade da contratação: "Esses veículos serão importantes para que a Smed continue atendendo os alunos excepcionais e consiga desafogar os depósitos e dar o devido encaminhamento para os materiais".
- 17 e 18 de janeiro de 2023 - Secretaria de Administração e Patrimônio (Smap) indica que a documentação está pronta para a elaboração do edital de licitação e que o aumento da frota já poderia ser enviado para aprovação junto ao Comitê de Gestão Orçamentária e Financeira (CGOF). Faltava apenas um pedido de liberação (PL).
- 23 de janeiro de 2023 - Ao receber o PL, a unidade financeira da Smed responde que o orçamento de 2023 não prevê ampliação de gastos com locação de veículos com motorista. Para emissão do PL, seria necessário ter uma autorização e indicação de dotação orçamentária pelo ordenador de despesas (secretária). No documento seguinte do processo administrativo, é anexada a resolução 001/223, do CGOF, vedando gastos com cinco itens, incluindo ampliação de frota locada.
- 26 de janeiro de 2023 - A Smap devolve o expediente à Smed "uma vez que está vedada a ampliação de frota de veículos locados".
- 6 de fevereiro de 2023 - A Smed retoma o procedimento para tentar contratar pelo menos dois caminhões, mantendo o patamar de serviço do ano anterior.
- 17 de fevereiro de 2023 - A unidade financeira da Smed repete que não há em 2023 previsão orçamentária para ampliação de frota alugada. Diz que, para emissão do pedido de liberação, era necessário autorização e indicação de dotação orçamentária pelo ordenador de despesas (secretária), o que novamente não aconteceu.
- 15 de março de 2023 - Setor de gestão de recursos da Smed envia ao gabinete da então secretária pedido de autorização e indicação de dotação orçamentária para a contratação. Não há resposta no processo administrativo.
- 8 de maio de 2023 - Após quase dois meses sem despacho, unidade financeira volta a manifestar que contratação está vedada pelo núcleo do governo.
- 7 de junho de 2023 - Um dia após publicação de reportagem do GDI mostrando caixas de livros empilhadas em escolas e galpões úmidos e sujos, a então titular da Smed Sônia da Rosa envia ao gabinete do prefeito Sebastião Melo um pedido de excepcionalização para ampliação da frota. A solicitação fica sem resposta.
- 26 de junho de 2023 - Não há resposta ao pedido de excepcionalização. Uma servidora do gabinete do prefeito Sebastião Melo devolve o expediente para "conhecimento e deliberações que julgar pertinentes" do novo titular da Smed, José Paulo da Rosa.
Contraponto
O que disse a Smed por meio de nota:
"O relatório preliminar da Auditoria Especial da Smed, determinada pelo prefeito Sebastião Melo e realizada pela Secretaria Municipal de Transparência e Controladoria, identificou erros na gestão dos processos internos que contribuíram para os problemas de logística. Reforçamos que, apesar de todo o transtorno ocorrido, não houve desperdício de recursos. Quando o centro do governo teve ciência da gravidade dos problemas de armazenamento e distribuição dos materiais, foram tomadas providências e encaminhadas soluções, que seguem em execução".