Dias antes da abertura de processos administrativos de compra que pularam etapas e foram iniciados com os fornecedores definidos, o empresário Jailson Ferreira da Silva foi recebido pela então titular da Secretaria Municipal de Educação (Smed) de Porto Alegre, Sônia da Rosa, para reunião no gabinete da pasta. O encontro constou na agenda oficial de Sônia e ocorreu em 9 de março de 2022. Uma semana depois, a Smed deu início a uma série de seis compras de materiais de empresas ligadas a Jailson, somando R$ 43,2 milhões em pagamentos.
Jailson, conhecido como Jajá no meio político e empresarial, teve atuação nas vendas de cerca de 500 mil livros e 104 laboratórios de matemática e ciências feitas pelas empresas Inca Tecnologia, Astral Científica e Sudu Inteligência Educacional à Smed. As aquisições ocorreram por meio de seis adesões à ata de registro de preço, instrumento conhecido como carona — licitação de outro ente público que pode ser aproveitada, mediante observação de regras. Das 11 compras feitas por carona pela Smed no ano passado, Jailson teve participação em mais da metade delas. As aquisições foram finalizadas entre junho e outubro de 2022.
A agenda da então secretária era distribuída diariamente por WhatsApp para secretários-adjuntos e diretores da Smed. O visitante é descrito na lista de compromissos como “Sr. Jailson” e a pauta apontada é “SAEB — Inca”. A sigla significa Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e Inca é o nome da editora sediada em Curitiba que, representada por Jailson, vendeu R$ 27,9 milhões à Smed em quatro procedimentos de carona no ano passado.
Cinco dias depois do encontro, em 14 de março, a Inca emitia o primeiro orçamento para vender livros à Smed por R$ 6,6 milhões. O processo administrativo de aquisição foi inaugurado com essa cotação em 7 de abril. Já o procedimento para compra de laboratórios da Astral por R$ 6,7 milhões foi aberto em 16 de março, uma semana após a agenda entre Jailson e Sônia, com a Smed aderindo diretamente à ata de registro de preço que encaminhava o negócio junto à empresa. Jailson é representante tanto da Inca quanto da Astral.
No dia da reunião com o empresário, Sônia não havia completado uma semana à frente do cargo. Ela tomou posse na Smed em 3 de março de 2022. Jailson e o proprietário da Inca e da Astral, Sérgio Bento de Araújo, já haviam se reunido com autoridades da prefeitura de Porto Alegre para apresentar os produtos das empresas em julho de 2021, o que foi registrado em redes sociais. Contudo, foi somente após a posse de Sônia e a reunião com Jailson que foram abertos os processos administrativos de compra pela Smed.
Procurada por GZH, a ex-secretária não respondeu aos questionamentos de GZH.
Cronologia
- 3 de março de 2022 - Posse de Sônia da Rosa na Smed
- 9 de março de 2022 - Reunião entre a secretária e o empresário Jailson Ferreira da Silva no gabinete
- 14 de março de 2022 - Cinco dias depois do encontro, Inca emite o primeiro orçamento para vender R$ 6,6 milhões em livros à Smed
- 16 de março de 2022 - Uma semana depois da agenda, Smed abre processo administrativo para comprar laboratórios da Astral Científica por R$ 6,7 milhões
- 22 de março de 2022 - Em menos de duas semanas, Inca emite o segundo orçamento para a Smed. Desta vez, para vender coleções de livros pelo valor total de R$ 12,1 milhões
- Entre junho e outubro de 2022, a Smed finalizou seis compras junto a empresas vinculadas a Jailson, com gastos de R$ 43,2 milhões
Regras para compra por carona
As aquisições por carona são regradas por uma Instrução Jurídica Referencial da Procuradoria-Geral do Município (PGM) e por norma do Tribunal de Contas da União (TCU).
De acordo com as regras, um processo administrativo de compra deve ser iniciado com a apresentação de uma demanda do poder público. É como fazer uma lista de mercado demonstrando a necessidade de leite e biscoito que tenham determinadas vitaminas, mas sem mencionar uma marca específica dos produtos a serem adquiridos. Depois, o setor responsável elabora um estudo preliminar que irá apontar alternativas para solucionar a demanda, com a discussão de critérios quantitativos e qualitativos.
É necessário concluir um planejamento que demonstre a viabilidade, a economicidade e a eficiência da contratação para a administração pública. As etapas seguintes se sucedem até que seja avaliada a melhor opção de modalidade de compra e a definição do fornecedor, mas a Smed iniciou o processo com a escolha encaminhada. Não foram realizados os estudos preliminares nem sequer apontadas as demandas. Os processos administrativos começaram diretamente com orçamentos ou atas de registro das empresas que viriam a ser contratadas. A pasta apontou documentalmente, desde o princípio dos trâmites, a Inca Tecnologia, a Astral Científica e a Sudu Inteligência Educacional como as escolhidas para vender produtos à rede municipal de ensino.
A Sudu, sediada em Manaus, não é de propriedade da Jailson nem de Araújo, mas vende livros da editora Inca. Foram mais de 100 mil exemplares da coleção de educação ambiental e sustentabilidade da marca Inca vendidos pela Sudu à prefeitura por R$ 8,6 milhões. Nos processos administrativos de compra por carona, é preciso apresentar orçamentos de outras possíveis fornecedoras para demonstrar o que é chamado de "vantajosidade". Isso serve para indicar que a carona irá garantir um bom preço para o município. Neste ponto, entrou a participação de Jailson. Uma empresa em nome dele, a World Company Soluções e Inovações Tecnológicas, apresentou um orçamento de R$ 12,7 milhões para fornecer os livros. A cotação é assinada por Jailson.
Uma terceira empresa, que também vende publicações da Inca, conforme demonstrado no seu perfil em rede social, deu outro orçamento superior a R$ 12 milhões. Assim, com os orçamentos, incluindo o de Jailson, os R$ 8,6 milhões cobrados pela Sudu para vender livros da Inca receberam o aspecto de vantajosidade.
Reportagens do Grupo de Investigação da RBS (GDI) mostraram que milhares dos exemplares adquiridos sem planejamento junto às fornecedoras ficaram encaixotados em locais improvisados nas escolas e em depósitos da Smed, sem uso pelos estudantes. Parte do material didático estava estocado em galpões úmidos e sujos.
Após as revelações, Sônia deixou a titularidade da Smed em 18 de junho de 2023.
Veja abaixo os desdobramentos após a reunião entre o empresário Jailson Ferreira da Silva e a então titular da Smed, Sônia da Rosa, em 9 de março de 2022:
Astral Científica
- Venda de 104 laboratórios de ciências e matemática à Smed por R$ 6,7 milhões
- A compra foi feita a partir de adesão à ata de registro de preço do Consórcio Público Intermunicipal de Inovação e Desenvolvimento do Estado de São Paulo (Cindesp), que apontava a Astral como fornecedora
- O processo administrativo de compra da Smed começou em 16 de março de 2022, uma semana após a reunião
- O primeiro documento do trâmite oficial foi a ata do Cindesp
- Foi o próprio Jailson, representante da empresa, quem fez a entrega dos kits em um depósito da Smed na Rua La Plata, no bairro Jardim Botânico, no dia 14 de junho de 2022. O fato foi registrado em rede social.
Inca Tecnologia
- Venda de livros da coleção Aprender Mais à Smed por R$ 6,6 milhões
- A compra foi feita a partir de ata de registro de preço do Estado de Sergipe, que apontava a Inca como fornecedora
- O processo administrativo de compra da Smed começa em 7 de abril
- O primeiro documento do processo administrativo é um orçamento da Inca, cuja data é 14 de março de 2022, cinco dias após a reunião
*Inca Tecnologia
- Venda de livros das coleções Empreendedorismo e Projetos de Vida e Educação Financeira à Smed por R$ 12,1 milhões
- A compra foi feita a partir de ata de registro de preço do Estado de Sergipe, que apontava a Inca como fornecedora
- O processo administrativo de compra da Smed começa em 20 de abril de 2022
- O primeiro documento do processo administrativo é um orçamento da Inca, cuja data é 22 de março de 2022, 13 dias depois da reunião.
*Esse processo administrativo, posteriormente, seria desdobrado em dois, um para cada coleção de livros.
Inca Tecnologia
- Venda de livros da coleção Aventura na Leitura à Smed por R$ 9,3 milhões
- A compra foi feita a partir de ata de registro de preço do Estado de Sergipe, que apontava a Inca como fornecedora
- O processo administrativo de compra da Smed começa em 6 de maio de 2022
- O primeiro documento do processo administrativo é um orçamento da Inca, cuja data é 5 de maio de 2022
Sudu Inteligência Educacional
- Venda de livros da editora Inca de educação ambiental e sustentabilidade à Smed por R$ 8,6 milhões
- A compra foi feita a partir de ata de registro de preço do Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento Sustentável do Alto Paranaíba (Cispar), com sede em Patos de Minas (MG)
- O processo administrativo de compra da Smed começa em 9 de setembro de 2022, sendo o que ocorreu mais tardiamente após a reunião entre Jailson e Sônia
- O primeiro documento do processo administrativo é a ata de registro de preço da Cispar
Contrapontos
O que diz a Smed: "Todas as informações estão sendo apuradas pela Auditoria Especial da Educação, realizada pela Secretaria Municipal de Transparência e Controladoria (SMTC), por determinação do prefeito Sebastião Melo. Reiteramos, ainda, que as agendas não são restritas. A então secretária – bem como os gestores municipais – sempre esteve aberta ao diálogo, de forma transparente, a entidades, empresas e cidadãos em geral".
O que diz o empresário Jailson Ferreira da Silva: "Todas as tratativas foram feitas de acordo com os ritos legais previstos pela legislação em vigor e de forma republicana. Quando forem requeridos pelos organismos oficiais, quaisquer outros esclarecimentos serão fornecidos aos órgãos competentes".
O que diz a ex-secretária da Educação Sônia da Rosa: contatada pela reportagem, não respondeu.
O que diz a empresa Sudu: A Sudu Inteligência Educacional, seus sócios e diretores esclarecem que: não conhecem, nunca mantiveram contato e não têm qualquer relacionamento com o senhor Jailson Ferreira da Silva; sempre pautaram a sua conduta pelo mais estrito respeito às regras legais e que, pelo menos na parte concernente à empresa, o fornecimento à Prefeitura de Porto Alegre ocorreu em absoluta observância à legalidade; e esperam que as imputações sejam profundamente investigadas, inclusive para o fim de demonstrar a inocorrência de qualquer conduta irregular por parte desta empresa e seus agentes.
O que dizem as empresas Inca e Astral: contatadas, não responderam até a publicação desta reportagem.