A atuação de colombianos na Região Metropolitana vai bem além do Bono a Estrela, loteria ilegal com cartelas em espanhol e sorteio ao ar livre, prática revelada na semana passada por veículos do Grupo RBS.
Os estrangeiros também estão por trás de uma rede irregular de empréstimo de dinheiro a juro para pequenos comerciantes. Nos bairros Guajuviras e Estância Velha, em Canoas, e em cidades vizinhas, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) constatou o crime de agiotagem feito às claras nas ruas principais. Pequenos cartões são entregues a pedestres e a lojistas oferecendo crédito facilitado em até seis horas, inclusive para pessoas negativadas. Basta ao interessado entrar em contato com um WhatsApp ou um número fixo, escritos no anúncio.
A reportagem recebeu os cartões em locais próximos ao ponto onde são realizados os sorteios do Bono a Estrela, entre duas lojas da avenida principal do bairro. Em um deles, a proposta é empréstimo "sem burocracia, sem fiador, sem consulta ao SPC ou Serasa, mediante pagamentos diários". Um dos lojistas, que pediu para não ser identificado, explicou que os colombianos emprestam a partir de R$ 500, com juros de 10% a 20% com a obrigação de pagamento de parcelas diárias em um prazo máximo de quitação de 20 dias.
O GDI teve acesso a cartões onde os valores oferecidos vão até os R$ 5 mil e a quitação pode ser feita entre 20 e 24 parcelas diárias. Para pedir os valores, é necessário apresentar CPF, comprovante de residência (normalmente compartilhada através da função de localização do WhatsApp) e o CNPJ da loja, além de dois números de telefone. Tudo isso porque não há qualquer registro oficial do empréstimo, e os colombianos querem garantias de pagamento.
— Eles passam para cobrar todos os dias, sempre no final da tarde — relata o funcionário de uma loja onde, segundo ele, um ex-patrão fazia empréstimos.
A cada parte paga, o valor vai sendo carimbado em um cartão até que o empréstimo esteja quitado. Apesar de poucos lojistas assumirem que fazem a retirada dos valores, todos citaram que é o serviço é bastante comum no bairro.
— Se pagar direitinho, é tranquilo — diz um comerciante.
A dona de uma loja de roupas confirma ser abordada com frequência por estrangeiros que oferecem empréstimo.
— Eles não dizem quase nada. Só entram, entregam o cartãozinho e dizem que é pra ajudar.
A reportagem conversou com um comerciante do bairro Estância Velha, também em Canoas. Ele diz que, diariamente, casais de colombianos passam na sua loja e na de outros empreendedores, oferecendo empréstimos. Em outras ocasiões, são dois estrangeiros em uma moto.
— Largam cartãozinho, oferecem dinheiro ao comércio. "Pode contar com nosso apoio, estamos aí para apoiar", dizem. Conheço várias pessoas que pegaram. Desde 2019, eles aparecem.
O atendente de uma padaria já ouviu sobre os empréstimos.
— São os mesmos que fazem aqueles sorteios na rua — diz, referindo-se ao Bono a Estrela.
Ele complementa:
— É pagamento diário, mas só pra quem tem CNPJ.
Também no bairro Estância Velha, a reportagem encontrou uma senhora que pega, de maneira recorrente, empréstimos com pagamentos diários. Para R$ 400, ela desembolsa R$ 520, o que no somatório alcança 30% de juros.
— Eu pego um mês sim e outro não, mais ou menos. É conforme as contas do mês — admite.
Ela fala do agiota com cuidado, como se preocupada em não perder a fonte de renda, por mais que seja abusiva. Diz nunca ter atrasado uma parcela:
— Comigo nunca aconteceu nada, graças a Deus, eu pago certinho.
A promotora Alessandra Moura Bastian da Cunha, coordenadora do Centro de Apoio Operacional Criminal e de Acolhimento às Vítimas do Ministério Público (MP), afirma que a ilegalidade é clara:
— A taxa de juro depende da análise de caso concreto. Mas 20% em 20 dias é abusivo. É o crime de usura, que nós conhecemos como agiotagem. Está previsto na legislação nos crimes contra a economia popular. Nesse caso, não tenho dúvida nenhuma, pelas taxas que estão sendo cobradas, de que temos o crime de usura — diz a promotora.
Sem entrar no mérito específico do caso dos colombianos, o delegado Thiago Albeche, da Delegacia de Defraudações da Polícia Civil, ressalta que, quando o empréstimo é feito entre particulares, a taxa de juros que pode ser cobrada é bastante baixa. E quando o empréstimo for praticado por uma pessoa jurídica, é necessária autorização das autoridades financeiras.
— Afora essas situações, quem praticar atividades de empréstimo poderá incorrer não só na Lei de Usura como em algum crime contra o Sistema Financeiro Nacional (7492/1986), a depender da situação concreta.
Segundo o economista Gabriel Melo, qualquer empréstimo deve partir de entes regularizados junto BC e que atuem de acordo com a legislação e as resoluções vigentes sobre o tema. Essa regulamentação existe, inclusive, para os empréstimos online.
A promotora Alessandra Cunha também pontua a diferença do empréstimo entre pessoas conhecidas e a ação de um grupo organizado, como é o caso dos colombianos na Grande Porto Alegre.
— Vai muito além do empréstimo feito por uma pessoa ou outra a alguém que está em fragilidade econômica. Claramente, é a ação de um grupo organizado, fazendo essa prática para um determinado tipo de público, para que possa ter maior segurança da cobrança dos valores, com localização. Não se sabe o que ocorre se não houver pagamento, de que forma essa cobrança será feita. Pode haver inclusive extorsão, dependendo da situação concreta — diz a promotora, que explica quais as possíveis consequências da ação:
— Geralmente, a prática dessa maneira, a depender da situação, pode ser classificada como organização criminosa e lavagem de dinheiro, dependendo do aprofundamento da investigação.