"Sorteos para hoje... Dos sorteos para hoje... La boleta es para hoje", anuncia o vendedor, num "portunhol" com forte sotaque castelhano. Ele é apenas mais um dentre dezenas de ambulantes que percorrem, munidos de megafones brancos com detalhes em vermelho, as ruas do bairro Guajuviras, um dos mais populosos de Canoas, na Região Metropolitana. Anunciam a venda de bilhetes de uma loteria clandestina, Bono a Estrela, modalidade criada na Colômbia e que foi trazida ao Brasil por imigrantes.
Os sorteios são conduzidos por colombianos e a maioria dos vendedores é da mesma nacionalidade, embora muitos brasileiros sejam contratados para comercializar os bilhetes. As vendas acontecem em Canoas, nos bairros Guajuviras e Mathias Velho, e em pontos da zona norte de Porto Alegre, como Humaitá e Rubem Berta, conforme constatou o Grupo de Investigação da RBS (GDI), ao monitorar por duas semanas a jogatina ilegal.
No Nordeste, colombianos que usavam a mesma loteria foram alvos de operações policiais e indiciados por exploração de jogo de azar e lavagem de dinheiro nos últimos dois anos. A Polícia Civil gaúcha informou que também apura o caso.
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O Ministério da Fazenda confirmou ao GDI que a venda desses bilhetes não é permitida. Informa que, no Brasil, inexiste autorização, de modo geral, para operação de sorteios com base em captação de apostas ou comercialização de números envolvidos em eventos tais como rifa, modalidade lotérica de prognósticos numéricos ou sorteio.
A promotora Alessandra Moura Bastian da Cunha, titular do Centro de Apoio Operacional Criminal e de Acolhimento às Vítimas do MP-RS, enfatiza que os jogos de azar são proibidos no Brasil pela Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688, de 3 de outubro de 1941). A proibição consta nos artigos 50, 51 e, neste caso em particular, 52 (que proíbe introduzir, no país, para o fim de comércio, bilhete de loteria ou rifa estrangeiras). A pena prevista ao infrator é prisão simples (de quatro meses a um ano, além de multa).
Nada disso parece atrapalhar a jogatina. No bairro Guajuviras, mais de 30 vendedores da loteria clandestina se concentram no meio da manhã em duas lojas de artigos femininos situadas entre duas oficinas, na avenida principal do bairro. Após rápida reunião, eles saem, carregando sacolas recheadas de bilhetes. Vendem a cartela de oito números de quatro dígitos a R$ 5 para donas de casa, comerciantes, taxistas, motoristas de carros de aplicativo e caminhoneiros, entre outros. A comercialização ocorre inclusive em frente a uma companhia do 15º Batalhão de Polícia Militar ou de viaturas da BM.
O curioso é que o Bono a Estrela (Bônus para Estrela, em uma tradução livre) nem sequer se dá ao trabalho de confeccionar bilhetes em português. Usa dizeres em espanhol mesmo ("La Boleta se anulará se se encuentra rota", avisa o papel do sorteio), o que indica que os bilhetes sejam importados.
Sorteio e premiação
Os sorteios são realizados do meio para o fim da tarde, diariamente, com um sistema próprio de apuração. Variam de local, mas a cena é a mesma: em plena rua, em frente a uma loja, o vencedor é recebido por pessoas com sotaque espanhol e leva a premiação em dinheiro vivo. Tudo é filmado e divulgado em vídeo, num número de WhatsApp que consta nas cartelas vendidas pelos agentes lotéricos informais.
A premiação promete R$ 1,5 mil, em média, por dia, mas costuma acumular. Em um dia da semana passada o vencedor foi anunciado quando o prêmio estava acumulado em R$ 6,5 mil.
Colombiana admite que gerencia a loteria ilegal
Por telefone, a colombiana Yuri Viviana Henao Osorio, 38 anos, cujo CPF aparece impresso em alguns anúncios do Bono a Estrela, confirmou que gerencia os sorteios da loteria ilegal.
— Algumas pessoas ficam responsáveis por uma praça. Eu sou a encarregada da praça do Guajuviras (bairro de Canoas) e meu chefe está na Colômbia — relata.
Yuri informou que está há dois anos no Brasil, que tem permissão para residir no país até 2029 e que abriu uma loja de bebidas, já fechada "porque não deu muito certo, não tinha tempo para ficar ali". Foi então que aceitou gerenciar as vendas do Bono a Estrela em Canoas, proposta feita por um empresário colombiano, cujo nome ela não revela porque "não tem autorização".
Yuri diz que recebe um percentual sobre o total que é comercializado e que os vendedores dos bilhetes lotéricos recebem uma comissão. Ela não quis revelar os valores.
Questionada se sabe que a prática de jogos de azar é proibida no Brasil e que a venda do Bono a Estrela não é permitida, ela reconhece que já ouviu falar disso. Diz que soube que é ilegal em São Paulo e admite que foi alertada que o mesmo ocorre no Rio Grande do Sul.
— Na verdade, não temos licença. Não posso falar mais, porque tenho de ser autorizada por meu chefe.