Por trás de processos com suspeitas de irregularidades na contratação e na fiscalização de serviços na Secretaria Municipal de Educação (Smed), há a realidade diária das escolas municipais, que têm dificuldades para resolver novos e velhos problemas.
A Escola Professora Judith Macedo de Araújo, no bairro São José, na Capital, registrou entupimento, com vazamentos, no esgoto da cozinha em maio de 2018. O conserto foi feito pela empresa Construcerto, mas até hoje, 1.252 dias depois, estragos que seriam decorrentes daquele serviço causam transtornos. O próprio conserto apresenta problemas de vazamento.
— Não sei se é descaso, questão de prioridade. Não sei se é questão de invisibilidade do nosso público. Fico pensando se isso acontecesse no Parcão, num bebedouro, que molhasse o chão e fizesse barro. Tu achas que passaria tanto tempo para consertar? É invisibilidade — desabafa a diretora Gislaine de Oliveira Coutinho, que já fez sete pedidos de consertos, ainda sem solução.
O primeiro alerta à Smed sobre os problemas foi em abril de 2019, pedindo revisão no trabalho da Construcerto, já que havia, novamente, vazamento dentro da cozinha. Há pontos em que o solo cedeu e o piso rachou. A direção não sabe se há relação com os serviços feitos pela Construcerto, mas pediu avaliação, que não ocorreu pela empresa.
— A empresa fez um serviço porco, malfeito, uma gambiarra. De um esgoto interno puxou um cano externo e largou na rua. Com a passagem de água quente o cano envergou e vaza dentro da cozinha. Foram quase R$ 6 mil para puxar um cano. E a Construcerto continua vindo aqui orçar outras coisas — diz Gislaine.
O Grupo de Investigação da RBS (GDI) analisou o processo número 18.0.000043590-9, aberto em 2018 para correção do vazamento na cozinha. Um engenheiro da Smed fez documento sobre o caso naquele ano: "Realizei visita técnica na EMEF JUDITH MACEDO DE ARAÚJO para verificação de entupimento, com vazamentos, no esgoto da cozinha. Ficou constatado o real vazamento. Encontra-se em estado crítico com urgência de reparos. Se a vigilância sanitária aparecer, certamente irá interditar a cozinha".
O parecer do técnico é de 10 de maio de 2018. Apesar da urgência apontada, documentos tramitaram para a aprovação do orçamento de R$ 5,9 mil e a liberação do recurso até 25 de setembro de 2018, quando foi confirmado o depósito do valor na conta da escola. O processo não tem qualquer informação sobre quando o serviço foi feito e se algum técnico da Smed atestou a execução. Mas houve o pagamento.
Em abril de 2019, ocorreu novo pedido da escola: "Solicitamos, com urgência, nova avaliação e reparos nos serviços realizados na rede de esgoto da nossa escola. Os reparos estão apresentando, novamente, vazamento, desta vez, dentro e fora da cozinha", escreveu a então vice-diretora Gislaine.
Depois disso, a escola já fez pelo menos mais sete pedidos à Smed sobre a necessidade de conserto, alertando sobre o risco aos alunos. O caso segue sem solução. Não consta no processo informação de que a Smed tenha contatado a Construcerto, empresa que fez o serviço em 2018, para que verificasse os problemas no trabalho executado.
— Acho que as pessoas têm a visão de que o que é público não é de ninguém. Na escola, a gente não gasta nada, a gente investe, pois cada centavo faz falta, é dinheiro público, de todo mundo. É preciso gerenciar muito bem essa verba — finaliza Gislaine.
Contrapontos
O que diz Júlio César dos Passos
Ex-coordenador-geral de Administração e Serviços da Smed conversou com o GDI:
Era pelo senhor que passavam pedidos de verba extra?
As escolas pediam liberação de verba extra e a gente repassava para o financeiro ou a (Secretaria da) Fazenda para liberar a verba.
Tem casos abertos por vocês, sem a demanda da escola?
Não. A demanda surge na escola, a gente no administrativo passava. Ou a Unidade de Obras ia nas escolas, e as escolas faziam orçamento e encaminhavam para a gente. A gente conferia se a documentação estava ok e se estava dentro dos limites da dispensa de licitação.
Quem pedia os orçamentos para as empresas, as escolas ou a Smed?
Geralmente, eram as escolas. A Unidade de Obras eventualmente, se não me engano, pedia alguma coisa.
O senhor tinha relação mais próxima com alguma empresa, a Construcerto? Há e-mails do Renato (sócio da empresa) em que ele passa para o senhor três orçamentos: o dele e de outras duas empresas. Por que isso ocorria?
Quando acontecia isso é porque havia algum atraso no pagamento.
Mas era antes da contratação do serviço, antes da escolha da empresa?
Ele ia na escola e, eventualmente, para adiantar, levava lá na Smed, quando era serviço mais urgente.
O que ele levava na Smed?
Os orçamentos.
Os três, inclusive, dos concorrentes?
Não, trazia o dele.
Estou perguntando sobre e-mails em que ele enviava ao senhor os três orçamentos. Era comum isso?
Não, comum não. Era, eventualmente, quando era serviço urgente. Acho que ele pegava na própria escola os orçamentos, sei lá, e mandava para a gente agilizar a liberação de recurso.
Tem risco de serem orçamentos fraudados, desconhecidos pelas outras empresas?
Não posso colocar a mão no fogo por ninguém. Quando a gente passa o recurso para a escola, ela verifica, sabe se era aquele valor que efetivamente tinha sido o mais acessível.
Normalmente, o valor mais baixo era da Construcerto.
Ele estava há bastante tempo prestando serviço para as escolas. As escolas chamavam ele em função da agilidade e da documentação que ele tinha em dia. Essa era uma dificuldade que se tinha com empresas, em função da documentação. Como é serviço urgente, as escolas chamavam quem tinha documentação em dia.
O senhor não estranhou ele encaminhar os três orçamentos?
Não. Na verdade, eu não pedia orçamentos nem encaminhava empresa para escola nenhuma. Apenas solicitava os orçamentos para liberar.
Uma outra situação é a que envolve o pagamento em 2021 de serviços feitos anos atrás.
Pelo que me lembro foi só de uma escola.
É aceitável que se monte um processo este ano, como se a escola estivesse demandando neste momento o serviço, para pagar algo do passado?
Não é comum de acontecer.
Mas é aceitável? Não pode ser considerado fraude, já que é um processo com informações falsas?
Fraude não. O serviço foi prestado. Mas não me recordo desse caso, é tanto processo que passava por mim.
Essa montagem do processo passou pelo senhor. É correto?
Não, não é correto. O serviço foi prestado, seria problema se não tivesse sido prestado. Em um caso que me lembro a escola estava para ser interditada, era serviço urgente.
O senhor nunca suspeitou que houve manipulação de orçamentos ou preços combinados?
Passavam "N" processos por mim. Eu nem olhava que empresa era. Como o serviço era sempre urgente, a gente tratava de liberar o mais rápido possível.
O que disse Renato Behrends, da Construcerto:
O senhor recebeu este ano por obras antigas, feitas em meados de 2016?
Recebi este ano por obras antigas e falta algumas para receber.
O senhor fazia e não recebia na época por falta de dinheiro?
Existem os serviços emergenciais, com verba extra. As escolas não têm verba disponível para qualquer despesa extra. Aí estourou esgoto, teria que fazer verba extra, diário oficial, não sei o quê, é demorado, em torno de 30 dias. Mas não pode a escola esperar esses 30 dias. O que ocorria: eu resolvia, bancava, e depois recebia.
Quem ligava para o senhor resolver, a Smed ou as escolas?
A própria Smed. A secretaria ligava e pedia para eu ir lá resolver o problema. A gente fazia um orçamento bem justo, porque não estaria disputando teoricamente com ninguém, né, para não ficar oneroso nem para um nem para outro.
Mas ligavam só para o senhor, não teria concorrência?
Ligavam para outros, mas a maioria do pessoal não abraçava essa bronca. Tinha que ter algum capital em caixa para poder fazer isso até receber. Porque às vezes demorava, chegou até a seis meses. Mas era uma coisa que não tinha problema.
Qual setor da Smed ligava?
O setor de obras.
E como era seu contato com o Júlio Passos, da coordenação de serviços?
Contato porque ele o diretor administrativo, me ligava e perguntava: “Renato, tu pode ir lá quebrar mais esse galho para nós?” Eu ia lá olhava, tá tudo bem, vamos tocar bala. Ocorreu que até 2016 funcionava assim. Daí depois, começou a faltar dinheiro acho que por causa das obras da Copa. Começou a trancar, passou cinco, seis, sete meses e eu não recebia, daí disse que não ia mais poder fazer. Em 2018, ainda fiz uma, que era água jorrando numa escola de um cano de 32, era um feriado de 12 de outubro, coloquei meu pessoal todo a trabalhar no feriadão inteiro. Até hoje, não recebi.
Em qual escola?
Leocádia.
Depois de 2016 o senhor não recebeu mais atrasados?
Não, não pagaram mais, mudou o prefeito em 2017. Agora, mudou de novo.
Agora em 2021 o senhor voltou a receber valores de anos atrás. Como é feita a correção?
Recebi alguma coisa, mas ainda falta. Olha, eu faço uma correção diante do material que foi usado.
O senhor apresenta novo orçamento como se o serviço fosse agora?
Exatamente, de reforma.
O senhor não consta como sócio da Construcerto. Mas é responsável?
Sou funcionário, minha esposa é a dona.
Tem situações de e-mail enviados pelo senhor com o seu orçamento e os de outras duas empresas. O senhor enviava os três orçamentos, para o Júlio?
Não. Não sei como pode ter sido isso.
Tem e-mail com seu orçamento, da CF Engenharia e da San&Conti. O senhor não lembra de mandar?
Estranho. Conheço os donos e tudo, mas...Só se alguma coisa que eu mandei para ele e ele me retornou para dizer o teu está o valor mais baixo, só teria que adequar conforme está os outros. Tem que ser tudo escrito igual os orçamentos.
Mas então o Júlio teria mandado os orçamentos para o senhor pedindo reparo no seu orçamento? Isso é correto, combinação?
Não. Ele diz “o teu preço é o mais em conta, só que tem algum detalhe no teu que não está com a mesma linguagem dos demais”. Tem que ser tudo no mesmo padrão conforme a escola está pedindo. Aí no caso ele mandava para eu ver como estava os outros para eu fazer também, mas meu preço já estava mais baixo.
Acho que é algo que ele me mandou e eu mandei de volta.
O que diz Carlos Francisco da Rosa, da CF Engenharia:
"Desconheço (a situação de outra pessoa mandar orçamento em nome da empresa dele). Sobre o caso da Escola Migrantes, reforma de uma sala, eu tinha entregue um orçamento para a gestão de obras. Depois, me pediram outro orçamento, com menos serviços. Mas não lembro deste orçamento aí (o que foi enviado à Smed por Renato Behrends, da Construcerto). Vou estar dando serviço meu para terceiro? Acho errado isso aí."
Comunicado da prefeitura sobre as medidas adotadas
"Por determinação do prefeito Sebastião Melo, a Controladoria-Geral do Município abriu sindicância para apurar ocorrências na aplicação das verbas extras e nos repasses trimestrais para as escolas da rede municipal de ensino, no âmbito da Secretaria Municipal de Educação (Smed). A medida está publicada em edição extra do Diário Oficial de Porto Alegre (Dopa) desta quarta-feira, 3, e faz parte de um conjunto de providências adotadas ao longo deste ano para buscar mais eficiência à aplicação dos recursos e fortalecer a gestão da secretaria.
Após auditoria ordinária abrangendo 2020 e 2021, realizada em julho, a Controladoria identificou indícios de irregularidades em processos de gastos. A Smed também realizou um levantamento de inconsistências e encaminhou denúncia para o órgão em setembro. A análise preliminar motivou a abertura de uma auditoria especial, publicada em 29 de outubro no Dopa, que deverá investigar problemas nos procedimentos administrativos. Já a sindicância, que é um processo sigiloso e terá prazo de 60 dias, irá verificar a atuação de servidores e agentes públicos.
Gestão - Desde o início da atual administração, a orientação foi elaborar novos fluxos administrativos, com foco na gestão da secretaria para melhorar a qualidade dos resultados do ensino em Porto Alegre. Conforme o novo secretário-adjunto da Smed, Mário de Lima, as possíveis irregularidades são referentes a série de contratações baseadas em orçamentos inconsistentes, combinadas com o aumento no valor das despesas nos últimos anos.
“O Município comunicou formalmente ao Ministério Público sobre o início da apuração, para que possa acompanhar. Sem qualquer julgamento prévio, a determinação é esclarecer os fatos, retroagindo aos últimos 10 anos, e criar mecanismos que fortaleçam a transparência e a correta aplicação dos recursos públicos”, afirmou.
No âmbito específico das verbas extras e repasses trimestrais, a Smed adotou um conjunto de providências a partir de setembro, quando efetivou a denúncia para a Controladoria: afastamento dos servidores envolvidos de áreas sensíveis, suspensão de contratações com empresas possivelmente envolvidas e publicação de Instrução Normativa estabelecendo fluxos para aumentar a transparência das verbas extras em obras e serviços.
O repasse trimestral é um recurso dedicado ao custeio ordinário das escolas, para despesas operacionais como telefonia, material de limpeza e insumos diversos. Já a verba extra existe para ser usada em situações extraordinárias, como consertos emergenciais de redes elétrica e hidráulica, telhado e portões, entre outras situações."