A prática de escolha de empresas a partir de orçamentos combinados é uma das suspeitas envolvendo serviços pagos com verba extra pela Secretaria Municipal de Educação (Smed). Por ela, uma só empresa entregava à pasta ofertas de preço de três firmas diferentes. Assim, garantiria que seria selecionada para fazer o serviço ou o repassaria para um parceiro, numa espécie de rodízio.
No centro do suposto esquema está a Construcerto (nome fantasia da empresa Renata Roesssler Viana Behrends), que participou de pelo menos 53 serviços pagos com verba extra em cinco anos, conforme dados da Smed. Não há irregularidade em uma mesma empresa vencer as disputas com frequência, desde que o processo esteja dentro da lei. Mas há dúvidas entre servidores sobre a lisura no sistema de escolhas.
Relatos indicam, por exemplo, que Renato Behrends, marido de Renata e que não consta oficialmente como sócio da Construcerto, mas usa o nome em orçamentos e é conhecido na Smed como dono da Construcerto, forneceria à secretaria as três cotações necessárias para a escolha da empresa que faria os serviços emergenciais: o dele e os valores em nome de outras duas empresas. Invariavelmente, nesses casos, o vencedor seria ele.
Uma das situações suspeitas verificadas pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI) envolve a Escola Municipal de Ensino Fundamental Migrantes. Um e-mail enviado por Renato em 26 de maio deste ano chama a atenção. No assunto da mensagem consta "orçamentos Migrantes", no plural. O destinatário seria Júlio César dos Passos, que até setembro atuava como coordenador-geral de Administração e Serviços da Smed e foi afastado sob suspeita de envolvimento nas irregularidades.
Ao receber a mensagem do empreiteiro, com orçamentos da Construcerto e de outras duas empresas — CF Engenharia e San & Conti, nomes que costumam se repetir nas supostas disputas com a Construcerto —, o então coordenador a repassou para análise do setor de obras da secretaria.
Quando recebeu o pedido, um dos engenheiros desconfiou de dados dos orçamentos. Como já havia suspeitas de processos forjados ou superfaturados, resolveu fazer um teste: solicitou, em 10 de junho, diretamente à CF Engenharia, um orçamento para o mesmo serviço já cotado nos documentos encaminhados por Renato, cujo valor era de R4 24,5 mil.
Em 21 de junho, Carlos Francisco da Rosa, dono da CF, respondeu ao e-mail dizendo que não tinha recebido o anexo das especificações técnicas necessárias para produzir o orçamento. Na comunicação, ele não fez nenhuma referência sobre já ter produzido uma cotação para o mesmo trabalho, ou seja, aquela enviada por Renato. Em 24 de junho, o empreiteiro remeteu o orçamento ao setor que havia feito o pedido e agradeceu pelo fato de a empresa ter sido lembrada para cotar o serviço.
A diferença de valores entre os dois documentos — o que supostamente fora feito pela CF e enviado por Renato à Smed e a cotação feita diretamente pelo dono da CF a pedido de servidor da Smed — foi de R$ 14,9 mil. O valor para materiais caiu de R$ 14,5 mil para R$ 7,9 mil. Já o custo de mão de obra passou de R$ 10 mil para R$ 1,6 mil, uma redução de 84%.
Em entrevista ao GDI, o dono da CF Engenharia se mostrou surpreso com a existência do orçamento com valor de R$ 24,5 mil. Disse não recordar de tê-lo produzido.
Outra comunicação de Renato ocorreu em 1º de junho deste ano, com assunto "orçamentos estrutura metálica". O serviço envolvia a Escola Municipal Monte Cristo. O empreiteiro escreveu a Passos: "Bom dia Júlio, segue em anexo orçamentos para conserto da estrutura metálica...".
Aparentemente, Renato não teve resposta até 7 de julho, quando remeteu novo e-mail ao então diretor informando que uma pessoa da escola estaria cobrando retorno sobre a aprovação do serviço. No dia seguinte, Passos remeteu ao setor de obras os três orçamentos a serem analisados.
Em 11 de agosto, a questão parecia seguir sem solução, e Renato mandou novo e-mail a Passos com três orçamentos em anexo: o da Construcerto (constando como "atualizado"), um da CF Engenharia e um da San & Conti. Passos repassou novamente a setores responsáveis. Neste caso, o GDI apurou que o serviço foi barrado. Por se tratar de estrutura metálica, está sendo feita uma licitação para contratar empresa que faça laudos técnicos para embasar os serviços.
Os dois casos fazem parte de uma lista de situações que indicam que empreiteiros faziam tratativas diretas com as escolas e com gestores da Smed, supostamente apresentando documentos em nome de outras empresas ou em um esquema de acerto entre as concorrentes.
Contrapontos
O que diz Júlio César dos Passos
Ex-coordenador-geral de Administração e Serviços da Smed conversou com o GDI:
Era pelo senhor que passavam pedidos de verba extra?
As escolas pediam liberação de verba extra e a gente repassava para o financeiro ou a (Secretaria da) Fazenda para liberar a verba.
Tem casos abertos por vocês, sem a demanda da escola?
Não. A demanda surge na escola, a gente no administrativo passava. Ou a Unidade de Obras ia nas escolas, e as escolas faziam orçamento e encaminhavam para a gente. A gente conferia se a documentação estava ok e se estava dentro dos limites da dispensa de licitação.
Quem pedia os orçamentos para as empresas, as escolas ou a Smed?
Geralmente, eram as escolas. A Unidade de Obras eventualmente, se não me engano, pedia alguma coisa.
O senhor tinha relação mais próxima com alguma empresa, a Construcerto? Há e-mails do Renato (sócio da empresa) em que ele passa para o senhor três orçamentos: o dele e de outras duas empresas. Por que isso ocorria?
Quando acontecia isso é porque havia algum atraso no pagamento.
Mas era antes da contratação do serviço, antes da escolha da empresa?
Ele ia na escola e, eventualmente, para adiantar, levava lá na Smed, quando era serviço mais urgente.
O que ele levava na Smed?
Os orçamentos.
Os três, inclusive, dos concorrentes?
Não, trazia o dele.
Estou perguntando sobre e-mails em que ele enviava ao senhor os três orçamentos. Era comum isso?
Não, comum não. Era, eventualmente, quando era serviço urgente. Acho que ele pegava na própria escola os orçamentos, sei lá, e mandava para a gente agilizar a liberação de recurso.
Tem risco de serem orçamentos fraudados, desconhecidos pelas outras empresas?
Não posso colocar a mão no fogo por ninguém. Quando a gente passa o recurso para a escola, ela verifica, sabe se era aquele valor que efetivamente tinha sido o mais acessível.
Normalmente, o valor mais baixo era da Construcerto.
Ele estava há bastante tempo prestando serviço para as escolas. As escolas chamavam ele em função da agilidade e da documentação que ele tinha em dia. Essa era uma dificuldade que se tinha com empresas, em função da documentação. Como é serviço urgente, as escolas chamavam quem tinha documentação em dia.
O senhor não estranhou ele encaminhar os três orçamentos?
Não. Na verdade, eu não pedia orçamentos nem encaminhava empresa para escola nenhuma. Apenas solicitava os orçamentos para liberar.
Uma outra situação é a que envolve o pagamento em 2021 de serviços feitos anos atrás.
Pelo que me lembro foi só de uma escola.
É aceitável que se monte um processo este ano, como se a escola estivesse demandando neste momento o serviço, para pagar algo do passado?
Não é comum de acontecer.
Mas é aceitável? Não pode ser considerado fraude, já que é um processo com informações falsas?
Fraude não. O serviço foi prestado. Mas não me recordo desse caso, é tanto processo que passava por mim.
Essa montagem do processo passou pelo senhor. É correto?
Não, não é correto. O serviço foi prestado, seria problema se não tivesse sido prestado. Em um caso que me lembro a escola estava para ser interditada, era serviço urgente.
O senhor nunca suspeitou que houve manipulação de orçamentos ou preços combinados?
Passavam "N" processos por mim. Eu nem olhava que empresa era. Como o serviço era sempre urgente, a gente tratava de liberar o mais rápido possível.
O que disse Renato Behrends, da Construcerto:
O senhor recebeu este ano por obras antigas, feitas em meados de 2016?
Recebi este ano por obras antigas e falta algumas para receber.
O senhor fazia e não recebia na época por falta de dinheiro?
Existem os serviços emergenciais, com verba extra. As escolas não têm verba disponível para qualquer despesa extra. Aí estourou esgoto, teria que fazer verba extra, diário oficial, não sei o quê, é demorado, em torno de 30 dias. Mas não pode a escola esperar esses 30 dias. O que ocorria: eu resolvia, bancava, e depois recebia.
Quem ligava para o senhor resolver, a Smed ou as escolas?
A própria Smed. A secretaria ligava e pedia para eu ir lá resolver o problema. A gente fazia um orçamento bem justo, porque não estaria disputando teoricamente com ninguém, né, para não ficar oneroso nem para um nem para outro.
Mas ligavam só para o senhor, não teria concorrência?
Ligavam para outros, mas a maioria do pessoal não abraçava essa bronca. Tinha que ter algum capital em caixa para poder fazer isso até receber. Porque às vezes demorava, chegou até a seis meses. Mas era uma coisa que não tinha problema.
Qual setor da Smed ligava?
O setor de obras.
E como era seu contato com o Júlio Passos, da coordenação de serviços?
Contato porque ele o diretor administrativo, me ligava e perguntava: “Renato, tu pode ir lá quebrar mais esse galho para nós?” Eu ia lá olhava, tá tudo bem, vamos tocar bala. Ocorreu que até 2016 funcionava assim. Daí depois, começou a faltar dinheiro acho que por causa das obras da Copa. Começou a trancar, passou cinco, seis, sete meses e eu não recebia, daí disse que não ia mais poder fazer. Em 2018, ainda fiz uma, que era água jorrando numa escola de um cano de 32, era um feriado de 12 de outubro, coloquei meu pessoal todo a trabalhar no feriadão inteiro. Até hoje, não recebi.
Em qual escola?
Leocádia.
Depois de 2016 o senhor não recebeu mais atrasados?
Não, não pagaram mais, mudou o prefeito em 2017. Agora, mudou de novo.
Agora em 2021 o senhor voltou a receber valores de anos atrás. Como é feita a correção?
Recebi alguma coisa, mas ainda falta. Olha, eu faço uma correção diante do material que foi usado.
O senhor apresenta novo orçamento como se o serviço fosse agora?
Exatamente, de reforma.
O senhor não consta como sócio da Construcerto. Mas é responsável?
Sou funcionário, minha esposa é a dona.
Tem situações de e-mail enviados pelo senhor com o seu orçamento e os de outras duas empresas. O senhor enviava os três orçamentos, para o Júlio?
Não. Não sei como pode ter sido isso.
Tem e-mail com seu orçamento, da CF Engenharia e da San&Conti. O senhor não lembra de mandar?
Estranho. Conheço os donos e tudo, mas...Só se alguma coisa que eu mandei para ele e ele me retornou para dizer o teu está o valor mais baixo, só teria que adequar conforme está os outros. Tem que ser tudo escrito igual os orçamentos.
Mas então o Júlio teria mandado os orçamentos para o senhor pedindo reparo no seu orçamento? Isso é correto, combinação?
Não. Ele diz “o teu preço é o mais em conta, só que tem algum detalhe no teu que não está com a mesma linguagem dos demais”. Tem que ser tudo no mesmo padrão conforme a escola está pedindo. Aí no caso ele mandava para eu ver como estava os outros para eu fazer também, mas meu preço já estava mais baixo.
Acho que é algo que ele me mandou e eu mandei de volta.
O que diz Carlos Francisco da Rosa, da CF Engenharia:
"Desconheço (a situação de outra pessoa mandar orçamento em nome da empresa dele). Sobre o caso da Escola Migrantes, reforma de uma sala, eu tinha entregue um orçamento para a gestão de obras. Depois, me pediram outro orçamento, com menos serviços. Mas não lembro deste orçamento aí (o que foi enviado à Smed por Renato Behrends, da Construcerto). Vou estar dando serviço meu para terceiro? Acho errado isso aí."
Comunicado da prefeitura sobre as medidas adotadas
"Por determinação do prefeito Sebastião Melo, a Controladoria-Geral do Município abriu sindicância para apurar ocorrências na aplicação das verbas extras e nos repasses trimestrais para as escolas da rede municipal de ensino, no âmbito da Secretaria Municipal de Educação (Smed). A medida está publicada em edição extra do Diário Oficial de Porto Alegre (Dopa) desta quarta-feira, 3, e faz parte de um conjunto de providências adotadas ao longo deste ano para buscar mais eficiência à aplicação dos recursos e fortalecer a gestão da secretaria.
Após auditoria ordinária abrangendo 2020 e 2021, realizada em julho, a Controladoria identificou indícios de irregularidades em processos de gastos. A Smed também realizou um levantamento de inconsistências e encaminhou denúncia para o órgão em setembro. A análise preliminar motivou a abertura de uma auditoria especial, publicada em 29 de outubro no Dopa, que deverá investigar problemas nos procedimentos administrativos. Já a sindicância, que é um processo sigiloso e terá prazo de 60 dias, irá verificar a atuação de servidores e agentes públicos.
Gestão - Desde o início da atual administração, a orientação foi elaborar novos fluxos administrativos, com foco na gestão da secretaria para melhorar a qualidade dos resultados do ensino em Porto Alegre. Conforme o novo secretário-adjunto da Smed, Mário de Lima, as possíveis irregularidades são referentes a série de contratações baseadas em orçamentos inconsistentes, combinadas com o aumento no valor das despesas nos últimos anos.
“O Município comunicou formalmente ao Ministério Público sobre o início da apuração, para que possa acompanhar. Sem qualquer julgamento prévio, a determinação é esclarecer os fatos, retroagindo aos últimos 10 anos, e criar mecanismos que fortaleçam a transparência e a correta aplicação dos recursos públicos”, afirmou.
No âmbito específico das verbas extras e repasses trimestrais, a Smed adotou um conjunto de providências a partir de setembro, quando efetivou a denúncia para a Controladoria: afastamento dos servidores envolvidos de áreas sensíveis, suspensão de contratações com empresas possivelmente envolvidas e publicação de Instrução Normativa estabelecendo fluxos para aumentar a transparência das verbas extras em obras e serviços.
O repasse trimestral é um recurso dedicado ao custeio ordinário das escolas, para despesas operacionais como telefonia, material de limpeza e insumos diversos. Já a verba extra existe para ser usada em situações extraordinárias, como consertos emergenciais de redes elétrica e hidráulica, telhado e portões, entre outras situações."