O Grupo de Investigação da RBS (GDI) já investigava a trajetória do Instituto de Educação Vida e Saúde (Isev), da Associação São Bento (ASB) e da Associação Brasileira do Bem-Estar Social, Saúde e Inclusão (Abrassi) antes de acontecer a Operação Camilo da Polícia Federal.
A reportagem buscou dados junto à Justiça, ao Ministério Público do RS e ao de SC, ao Tribunal de Contas Estadual do RS (TCE) e à Controladoria-Geral da União (CGU) a respeito das três OSC. Comprovou que as três, após inícios promissores, deixaram rastro de queixas e irregularidades em diversos municípios gaúchos e catarinenses.
Leia os principais fatos apurados no Rio Grande do Sul:
Fraudes na saúde e na educação em Rio Pardo
Um caso de creches mal gerenciadas em Florianópolis (SC) tem conexões com a fraude no Hospital do Vale, em Rio Pardo, porque envolve as mesmas entidades e, em alguns casos, as mesmas pessoas.
Em Rio Pardo, a Abrassi, coordenada por Fabiano Pereira Voltz, é alvo de duas investigações: uma na saúde e outra na educação. A Polícia Federal (PF) apura desvios de R$ 15 milhões em contratos com o Hospital do Vale, em Rio Pardo. Entre outras fraudes, empresas contratadas pela Abrassi teriam simulado limpezas que não ocorreram. Um outro episódio envolve risco ambiental: teria ocorrido descarte de uma cápsula de raio X sem os devidos cuidados. O material ainda não foi localizado e há preocupação de que possa contaminar o meio ambiente.
A ligação entre a prefeitura de Rio Pardo e as OSC enfrenta também problemas na área de educação. A prefeitura contratou a Associação São Bento (ASB) para providenciar gestão de escolas municipais de Educação Infantil (Emeis), atendendo crianças de três meses até cinco anos e 11 meses. Investigações apontam que a ASB, na realidade, apenas prestou serviço de gestão, mas nada relacionado à administração ou à terceirização de Emeis. Monitorou vagas e fez relatório sobre a performance das escolas.
Acontece que não foi isso que a ASB declarou, ao se credenciar a administrar creches em Florianópolis. A entidade firmou documento dizendo que atendia creche em Rio Pardo com 75 crianças matriculadas, do berçário à pré-escola. Mas esse serviço, conforme admite uma secretária municipal que se demitiu há pouco, não foi prestado. A PF vai agora investigar o porquê.
Atendimento hospitalar precário em Dois Irmãos e Taquara
Em Dois Irmãos, no Vale do Sinos, a entidade que deixou de cumprir contratos é o Isev. A entidade fez a gestão do hospital São José, naquele município, entre 2014 e o final de 2018, bem como de hospitais em outras 10 cidades. O Isev era dirigido por Juarez Ramos dos Santos, preso pela PF na Operação Camilo. A prefeitura canalizava recursos públicos para os atendimentos à população, mas ocorriam atrasos nos depósitos do FGTS aos funcionários, repasses ao INSS e nos pagamentos de médicos e fornecedores. Faltaram também exames que deveriam ter sido prestados à população.
Conforme o promotor da Justiça Wilson Luís Grezzana, os valores eram depositados na conta da Associação São Bento (ASB), com sede em Porto Alegre. Essa manobra serviria para evitar pagamento a credores e penhoras trabalhistas online. Ação civil pública movida pelo promotor cobra R$ 6 milhões do Isev, referentes a transferências dessa entidade para a ASB entre 29 de setembro de 2017 e 30 de abril de 2018. Parte do dinheiro teria retornado posteriormente ao Isev, em manobras ilegais.
Levantamento feito pela promotoria calcula que R$ 24 milhões tenham sido transferidos do Isev para a ASB, sem maiores justificativas. Em novembro de 2018, o Isev renunciou à administração do Hospital São José.
Em Taquara, onde o Isev administrou o Hospital Bom Jesus entre 2017 e 2018, a situação foi ainda pior. Em vistoria na instituição, o Conselho Regional de Medicina do Estado (Cremers) usou a palavra "caos" para definir a atuação do Isev à frente do local. O instituto foi afastado da gestão hospitalar por determinação judicial.
O processo judicial aponta problemas como falta de equipamentos básicos (seringas, medicamentos, lençóis) e uma "completa ineficiência na administração dos recursos públicos". O Isev alegou que as dificuldades na gestão eram resultado do atraso no repasse de verbas por parte do Estado.
Outros casos
Taquari
O Isev, que administrava a Casa de Saúde São José, teria cadastrado no sistema, em 2013, serviços diferentes daqueles prestados aos pacientes, gerando remuneração indevida. A constatação é de auditoria do Estado. O diretor, na época, era Juarez Ramos dos Santos (preso pela PF na semana passada). O Isev também deixou de pagar salários de funcionários e verbas rescisórias de contratos. Foi substituído em 2018 por outra entidade na gerência do hospital.
Estância Velha
O Isev foi contratado para gestão do Hospital Getúlio Vargas, em Estância Velha, em 2013. O contrato foi suspenso em 2017, depois de a prefeitura questionar gastos de R$ 2,1 milhões feitos pelo instituto ao longo dos anos. A briga administrativa resultou em suspensão de alguns serviços. Houve períodos em que a emergência do hospital ficou sem médico. Médicos e funcionários também entraram em greve por falta de pagamento. A questão foi parar na Justiça, que determinou a saída do Isev da gestão do hospital, reassumido pela prefeitura.
Cacequi
O Isev administrou o hospital do município de 2016 a 2019. Logo após o primeiro ano, começaram a ocorrer atrasos de salários dos funcionários. Entre os débitos que se acumularam estavam quatro parcelas dos salários em atraso de 2017 e 2018, 50% não pagos de dezembro de 2018, o 13º de 2018, salários de janeiro, julho e agosto de 2019 e um saldo de junho de 2019. O Isev foi substituído na gerência em agosto de 2019, deixando para trás a dívida com servidores do hospital.
Jaguari
O Isev administrou o Hospital da Caridade e Pronto Socorro. Faltaram documentos referentes ao pagamento de FGTS a servidores de outros municípios.
Arroio dos Ratos
O Isev foi contratado para gerenciar o Pronto-Atendimento do Hospital Sarmento Leite, naquele município, em 2013. Auditorias do Tribunal de Contas do Estado (TCE) encontraram falhas na liquidação de despesas entre 2013 e 2017, falta de prestação de contas durante um semestre inteiro de 2018 e atraso salarial de servidores da saúde, além de falta de Certidões Negativas Fiscais. Em 2017, foram registradas ausências de médicos. Os salários dos funcionários atrasaram, bem como os depósitos do FGTS. Em 2019, o Isev cedeu a gerência do hospital para a Abrassi, outra OSC – cujo superintendente fora, meses antes, gestor do Isev.
Contrapontos
O que dizem os mencionados nas reportagens
Rodrigo Grecellé, advogado de Juarez Ramos, do Isev, e também do prefeito de Rio Pardo, Rafael Reis Barros: "Não temos o que comentar a respeito do instituto e suas relações profissionais, porque não sabemos o que consta contra nossos clientes. Impediram nosso acesso aos autos. Os clientes foram sondados para uma colaboração premiada, mas como faríamos qualquer movimento nesse sentido, se sequer temos ciência das suspeitas que constam contra eles? Nunca vi isso num inquérito criminal. Até por isso eles ficaram calados no interrogatório".
José Henrique Salim Schmidt, advogado do presidente da Abrassi, Ricardo Riveiro: "Não tivemos acesso aos autos do inquérito, sequer à ordem de prisão. Um absurdo. Por isso, não há ainda o que comentar".
O que diz Rafael Ariza, advogado de Renato Walter (sócio da Abrassi) e Carlos Alberto Varreira (ex-gestor da Abrassi): "Não tivemos acesso aos autos, então nem sei do por que o cliente está preso. Com relação a ligações com as entidades investigadas, ainda é cedo para falar das atividades deles. Primeiro, preciso saber quais as suspeitas que pesam contra os dois".
O que diz Letícia Voltz, advogada de Fabiano Voltz, superintendente de Abrassi: ela reclamou que não teve acesso aos autos. Afirmou que outros dois advogados devem entrar em contato com a reportagem, assim que o inquérito vier a público.
A reportagem não localizou os defensores de Edemar João Tomazelli (da Abrassi) e do empreiteiro Julio Cezar da Silva.
GaúchaZH tentou ainda contato com representantes da Associação São Bento (ASB), mas ninguém atende nos telefones disponíveis.