A ponta de um novelo de irregularidades no terceiro setor, que se estende por três Estados brasileiros, começou a ser puxada na semana passada a partir de 15 prisões efetuadas pela Polícia Federal (PF) na Operação Camilo. As ilegalidades acontecem no ramo da terceirização da saúde e da educação, um prato cheio para entidades que intermedeiam serviços para o poder público – e que costumam aliviar a pressão sofrida pelos prefeitos para saldar as inchadas folhas de pagamento do funcionalismo municipal.
O Grupo de Investigação da RBS (GDI) segue desde fevereiro os passos de algumas dessas Organizações da Sociedade Civil (OSC) que agora viraram alvo da PF. As investigadas são a Associação Brasileira do Bem-Estar Social, Saúde e Inclusão (Abrassi), a Associação São Bento (ASB) e o Instituto de Educação Vida e Saúde (Isev). Essas entidades, especializadas em terceirizar tarefas, atuam no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e em São Paulo e têm um ponto em comum: estão ligadas por laços de parentesco e sociedade entre seus administradores.
A simples análise dos contratos e da performance dessas três OSC junto às prefeituras mostra um padrão: após um início de trabalho promissor, começam a acumular queixas de má prestação de serviços e de descumprimento de contratos nas áreas de saúde e educação.
O elo entre as três entidades poderia significar apenas algo como nepotismo cruzado no terceiro setor – e já seria suspeito. Mas o principal problema é que, em grande parte dos casos, as empresas contratadas não têm conhecimento técnico nem tradição nos serviços que se propõem a prestar. O resultado é desassistência nas áreas de saúde e de educação e, em alguns episódios, indícios de má gestão de recursos, como em Rio Pardo, foco da Operação Camilo. Lá, há suspeita de desvio de R$ 30 milhões da área de saúde e limpeza pública por parte da Abrassi, além de contratos de educação suspeitos firmados pela ASB. A prisão temporária das 15 pessoas – para fins de investigação policial – desse caso foi renovada pela Justiça.
Queixas como as registradas em Rio Pardo se repetem em pelo menos 16 municípios gaúchos e catarinenses, conforme levantamento do GDI. A soma de 17 contratos firmados pelas três entidades nesses municípios – e que resultaram em queixas e rompimentos por parte do poder público – chega a R$ 55 milhões.
As relações entre os que receberam contratos nessas prefeituras acontece em três níveis:
1) Entidades sociais: o primeiro nível é o das três OSC, cujos dirigentes possuem vínculos históricos. A começar pelo superintendente da Abrassi, Fabiano Pereira Voltz (preso na semana passada pela PF), que atuou junto à Associação São Bento (ASB) e por 10 anos no Isev. Quando questionado sobre sua experiência no terceiro setor, cita contratos que celebrou em nome das outras OSC. O telefone da ASB, em Porto Alegre, era o mesmo da Isev (embora agora esteja desligado). O contador é o mesmo. Diretores de uma atuaram na outra e vice-versa.
Tudo poderia se resumir a um grupo de amigos com mesma ideia. O fato de o Isev ter transferido, em 2018, a quantia de R$ 24 milhões para contas da ASB, conforme levantamento feito pelos municípios onde ambos atuaram, é considerado indício de lavagem de dinheiro por parte dos administradores das três OSC. Tanto que dirigentes da Abrassi (como Voltz), da ASB e do Isev (como Juarez Cunha, fundador da entidade) estão entre os 15 presos na Operação Camilo, da PF, que estuda as remessas de dinheiro para entender a motivação dos repasses.
Um indício sobre a estreita relação entre as três OSC vem de Edmar João Tomazelli, fundador da Abrassi, sócio de uma empresa de marketing em São Paulo. Ele foi preso pela PF. Documentos apreendidos indicam que ele teria se especializado em abrir organizações sociais, que depois são gerenciadas por terceiros. É o caso da Abrassi, que no RS tem como superintendente Fabiano Voltz.
2) Políticos: um segundo nível é o dos políticos envolvidos com as entidades que terceirizam os serviços. Entre os investigados na operação da PF estão três integrantes do partido Solidariedade no Rio Grande do Sul, entre eles dois presos: Renato Walter (sócio da Abrassi) e Carlos Alberto Varreira (secretário-geral do partido). Já do PSDB foi preso o prefeito de Rio Pardo, Rafael Reis Barros, e pelo menos quatro outras pessoas que tiveram vínculos com esse partido são investigadas. Todos supostamente beneficiados com desvios de verbas para a saúde. Uma das suspeitas da PF é de que a verba que sobra dos trabalhos não executados pelas OSCs seria partilhada com dirigentes políticos e seus cabos eleitorais.
3) Prestadoras de serviço: o terceiro nível de relações emaranhadas na terceirização da saúde e da educação acontece com prestadoras de serviço contratadas por elas. O setor de saúde municipal em Rio Pardo foi terceirizado para a Abrassi e a limpeza no Hospital do Vale, daquele município, é prestada por duas empresas: a Lavtrin e a Solusan. As duas empresas, Lavtrin e Solusan, foram abertas no mesmo dia (25 de abril de 2019) em Porto Alegre – logo após a Abrassi ser contratada para gerenciar a saúde pública em Rio Pardo. A Lavtrin, de limpeza, tem como sócia uma mulher, ex-administradora da ASB, entidade do terceiro setor que era comandada pelo atual dirigente da Abrassi. Ou seja, as empresas de limpeza supostamente concorrentes foram criadas no mesmo dia, logo após o contrato hospitalar ser firmado. Uma delas por uma pessoa ligada à Abrassi e à ASB.
As coincidências não param. A fornecedora da alimentação no Hospital do Vale, em Rio Pardo, está sediada em Florianópolis e tem como proprietário o irmão do dono da empresa Solusan, de limpeza.
Outra contratada pela Abrassi é uma empreiteira com sede em São José (SC). Ela faria a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do hospital de Rio Pardo. As obras da UTI chegaram a começar, mas agora têm destino incerto, já que os responsáveis por captar recursos, vinculados à Abrassi, foram presos, e também foi presa a engenheira que deveria supervisionar a obra e um dos sócios da construtora que faria a UTI.
A engenheira mora no RJ e nunca teria aparecido para acompanhar a obra. Trata-se de um mesmo grupo com várias empresas abertas, contratadas por eles mesmos para prestação de trabalhos que, em alguns casos, nem sequer são concluídos.
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Contrapontos
O que dizem os mencionados nas reportagens
Rodrigo Grecellé, advogado de Juarez Ramos, do Isev, e também do prefeito de Rio Pardo, Rafael Reis Barros: "Não temos o que comentar a respeito do instituto e suas relações profissionais, porque não sabemos o que consta contra nossos clientes. Impediram nosso acesso aos autos. Os clientes foram sondados para uma colaboração premiada, mas como faríamos qualquer movimento nesse sentido, se sequer temos ciência das suspeitas que constam contra eles? Nunca vi isso num inquérito criminal. Até por isso eles ficaram calados no interrogatório".
José Henrique Salim Schmidt, advogado do presidente da Abrassi, Ricardo Riveiro: "Não tivemos acesso aos autos do inquérito, sequer à ordem de prisão. Um absurdo. Por isso, não há ainda o que comentar".
O que diz Rafael Ariza, advogado de Renato Walter (sócio da Abrassi) e Carlos Alberto Varreira (ex-gestor da Abrassi): "Não tivemos acesso aos autos, então nem sei do por que o cliente está preso. Com relação a ligações com as entidades investigadas, ainda é cedo para falar das atividades deles. Primeiro, preciso saber quais as suspeitas que pesam contra os dois".
O que diz Letícia Voltz, advogada de Fabiano Voltz, superintendente de Abrassi: ela reclamou que não teve acesso aos autos. Afirmou que outros dois advogados devem entrar em contato com a reportagem, assim que o inquérito vier a público.
A reportagem não localizou os defensores de Edemar João Tomazelli (da Abrassi) e do empreiteiro Julio Cezar da Silva.
GaúchaZH tentou ainda contato com representantes da Associação São Bento (ASB), mas ninguém atende nos telefones disponíveis.