Um rastro de queixas e irregularidades em diversos municípios gaúchos e catarinenses envolve três Organizações da Sociedade Civil (OSC), apurou o Grupo de Investigação da RBS (GDI). Em Florianópolis, um contrato entre a Associação São Bento (ASB) e a prefeitura, para administrar cinco creches, foi cancelado. Ficou constatado que a ASB apresentou documentos irregulares para vencer a licitação, além de outros problemas. As creches ficam nos bairros Tapera, Agronômica, Saco Grande, Rio Tavares e Vila Aparecida. As duas últimas já estão em funcionamento.
A ASB precisava atestar experiência para ganhar a licitação e, para isso, enviou documentos em que afirma ter administrado creches de duas entidades na cidade de São Paulo (SP): a Carminha Associação para Reabilitação do Excepcional e a Sociedade Amiga e Esportiva do Jardim Copacabana (Saec). Tudo indica que isso não procede. Checagens de auditores mostram que a Carminha não funciona no local citado pela ASB há pelo menos quatro anos, os seus telefones estão desligados e o CNPJ, inativo desde outubro de 2018. Já a Saec, contatada, afirmou não ter relação com a ASB nem ter celebrado qualquer contrato com a ASB.
O atual superintendente da Abrassi, Fabiano Pereira Voltz, é um dos que se candidatou a administrar as creches em Florianópolis e, para se credenciar, intitulou-se ex-administrador da Associação São Bento (ASB) e coordenador e diretor do Isev por 10 anos. Outra que se apresentou como administradora da ASB para conseguir o contrato das creches em Florianópolis é uma das donas da Lavtrin, firma de limpeza contratada pela Abrassi, cuja administração está aos cuidados de Fabiano Voltz. Ambos agora são investigados pela Polícia Federal (PF).
Um terceiro personagem nesse caso é Julio César da Silva, preso pela PF na semana passada. Ele ocupava um cargo em comissão na Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis e a suspeita é de que tenha influenciado na contratação da ASB para construir as creches.
As famílias que utilizam as creches se queixaram ao Ministério Público de SC de que o serviço é marcado pelo improviso: escassez de material pedagógico, falta de profissionais para atender as crianças, insegurança nos locais e pouco alimento. Os profissionais que atendem nas creches, contratados sem concurso público, recebem salários abaixo do piso da categoria e alegam más condições de trabalho.
O convênio com a ASB foi rompido pela prefeitura de Florianópolis em fevereiro e o caso é investigado pelo MP. Um novo edital vai ser feito para concluir as creches anunciadas.
Dívidas de FGTS, obras atrasadas e cadastro irregular em Biguaçu
Em Biguaçu, na Grande Florianópolis, a gestão do Isev em postos de saúde e equipes de atendimento médico familiar, entre 2014 e 2018, foi pautada por irregularidades. Foi auditado pela Controladoria-Geral da União (CGU), que apontou série de ilegalidades nos serviços de saúde terceirizados para a entidade. A começar pela licitação, que teve só um concorrente: o próprio Isev, com valor quase idêntico ao do orçamento cotado pela prefeitura, o que despertou desconfiança nos auditores federais. Os auditores estranharam também a escassa divulgação da concorrência, que levou a ter só um interessado.
Por R$ 11,2 milhões, o Isev ficou de gerenciar por um ano 15 Unidades Básicas de Saúde e 18 equipes de Estratégia de Saúde da Família.
O Isev usou na concorrência CNPJ diferente do apresentado para emissão de notas fiscais. Os auditores afirmam que, com isso, a entidade tentou driblar a negativa de débitos com Previdência e FGTS dos funcionários.
O Isev também deu referência de serviços prestados a prefeituras do Rio Grande do Sul, mas em alguns casos não apresentou os contratos mencionados. Os auditores notaram ainda que, após realizar os serviços, foram apresentadas notas fiscais sem os respectivos demonstrativos de receitas e despesas. Isso gerou bloqueio de algumas receitas que o município poderia repassar ao Isev e, em consequência, os funcionários terceirizados da saúde ficaram sem receber salário por meses.
Após anos de atrasos em pagamentos de débitos em geral, o contrato em Biguaçu foi rompido pela prefeitura em 2018.
Demissão de médicos e fechamento de hospital em Nova Veneza
O Hospital São Marcos, que atendia pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) de Nova Veneza, no sul catarinense, chegou a ser fechado em março de 2017, quando era administrado pelo Instituto de Saúde e Educação Vida (Isev). A medida foi tomada devido ao atraso de três meses no salário de quase 20 médicos. O responsável pelas negociações em nome do Isev, na época, era Juarez Ramos dos Santos (preso pela PF na semana passada).
Com a falta de pagamentos, todos os médicos pediram demissão. Os 57 funcionários do hospital estavam com 13º e salário de um mês atrasados. Fornecedores também não haviam sido pagos. Tudo isso abalou o atendimento à saúde no sul catarinense. O Isev, que gerenciava a instituição de saúde desde 2016, foi destituído do hospital, que voltou a funcionar só dois meses depois, com nova administração. A dívida teve de ser renegociada pela prefeitura.
Dois hospitais no prejuízo em Criciúma
O Isev foi contratado para administrar o Hospital Materno Infantil de Criciúma em 2014. Recebeu R$ 32,2 milhões de verbas federais, repassadas pela prefeitura, até 2016, quando foi destituído da gestão, por não ter cumprido com série de requisitos. O diretor que negociou em nome do Isev, na época, era Juarez Ramos (preso na semana passada pela PF). Conforme auditoria da Controladoria-Geral da União, os problemas eram:
- Atendimento 24 horas: foi interrompido por falta de pessoal e meios.
- Greve de servidores: pararam atividades porque não recebiam em dia.
- Descontrole nas despesas: falta de relatórios mensais de despesas para o município.
- Repasses indevidos: parte da verba recebida da prefeitura teria sido transferida para outras Organizações Sociais Civis (OSC).
- Pagamentos acima da tabela: o Isev pagou exames de imagem, de diversos tipos, com valores acima da tabela do Ministério da Saúde.
O Isev também administrou naquele município catarinense o Hospital Psiquiátrico Rio Mainá, entre 2014 e 2019. Nos dois primeiros anos, recebeu R$ 6,5 milhões. Dali em diante, os repasses de dinheiro por parte da prefeitura começaram a diminuir, na medida em que auditoria detectou falta de detalhamento dos tratamentos oferecidos e do número de diárias de cada paciente. Começaram greves de servidores, atrasos de salários, até que o hospital fechou, em janeiro de 2019. Foi reaberto há cerca de um mês, para tratamento de pacientes com coronavírus.
Outros casos
Balneário Camboriú
O Isev assumiu o Hospital Santa Inês, em Balneário Camboriú (SC), em fevereiro de 2015. A unidade estava fechada desde 2011. Em um ano de atividades, o estabelecimento começou a acumular prejuízos. Seriam necessários R$ 400 mil mensais de repasses para mantê-lo aberto, mas as verbas municipais e federais foram insuficientes porque o número de pacientes era reduzido, justificou Juarez Ramos dos Santos, do Isev (preso pela PF agora). Em fevereiro de 2016, a Justiça mandou despejar o Isev por falta de pagamento de aluguel (R$ 858 mil) e do IPTU, e o hospital fechou em outubro de 2016. Foi reaberto há poucos dias, para abrigar pacientes em tratamento do coronavírus.
Navegantes
O Isev administrou o Hospital Nossa Senhora dos Navegantes de 2015 a 2018, recebendo para isso R$ 37,5 milhões. Ao final de 2018, a prefeitura local decretou "estado de calamidade pública" em decorrência da administração do Isev. Os motivos: falta de documentação regularizada por parte da empresa administradora, pendências de faturas de água e energia elétrica, débitos trabalhistas, falta de investimento em conservação de estrutura física e manutenção de equipamentos indispensáveis ao atendimento dos usuários do hospital. Uma nova empresa foi contratada para gerenciar o estabelecimento. A prefeitura local cobra, do Isev, R$ 7 milhões de multa.
Sombrio
O Isev administrou o hospital de 2016 a 2018. Nesse período, os atrasos salariais e de pagamento de fornecedores foram crônicos. Em maio de 2018, a Justiça determinou que a prefeitura desse município e o governo do Estado assumissem a administração e os débitos do hospital.
Fraiburgo
O Isev administrou o hospital Divino Espírito Santo em 2013. A gestão foi alvo de uma CPI por parte dos vereadores, porque o relatório de uma prestação de contas referente aos primeiros R$ 450 repassados ao Isev por parte da prefeitura de Fraiburgo apontou série de irregularidades. Entre elas, despesas realizadas entre dezembro de 2012 e março de 2013, ou seja, antes da aprovação do convênio pelos vereadores, o que ocorreu somente em abril de 2013. Foram identificados gastos com combustível de vários carros abastecidos em Porto Alegre e em outros municípios fora de Fraiburgo – num total em notas fiscais, segundo levantamento feito pelos vereadores, que daria para ir 160 vezes de Fraiburgo à capital gaúcha. Uma placa do Isev também custou R$ 16,5 mil, valor considerado "absurdo" pelos vereadores. O convênio foi desfeito e os valores são questionados na Justiça.
Contrapontos
O que dizem os mencionados nas reportagens
Rodrigo Grecellé, advogado de Juarez Ramos, do Isev, e também do prefeito de Rio Pardo, Rafael Reis Barros: "Não temos o que comentar a respeito do instituto e suas relações profissionais, porque não sabemos o que consta contra nossos clientes. Impediram nosso acesso aos autos. Os clientes foram sondados para uma colaboração premiada, mas como faríamos qualquer movimento nesse sentido, se sequer temos ciência das suspeitas que constam contra eles? Nunca vi isso num inquérito criminal. Até por isso eles ficaram calados no interrogatório".
José Henrique Salim Schmidt, advogado do presidente da Abrassi, Ricardo Riveiro: "Não tivemos acesso aos autos do inquérito, sequer à ordem de prisão. Um absurdo. Por isso, não há ainda o que comentar".
O que diz Rafael Ariza, advogado de Renato Walter (sócio da Abrassi) e Carlos Alberto Varreira (ex-gestor da Abrassi): "Não tivemos acesso aos autos, então nem sei do por que o cliente está preso. Com relação a ligações com as entidades investigadas, ainda é cedo para falar das atividades deles. Primeiro, preciso saber quais as suspeitas que pesam contra os dois".
O que diz Letícia Voltz, advogada de Fabiano Voltz, superintendente de Abrassi: ela reclamou que não teve acesso aos autos. Afirmou que outros dois advogados devem entrar em contato com a reportagem, assim que o inquérito vier a público.
A reportagem não localizou os defensores de Edemar João Tomazelli (da Abrassi) e do empreiteiro Julio Cezar da Silva.
GaúchaZH tentou ainda contato com representantes da Associação São Bento (ASB), mas ninguém atende nos telefones disponíveis.