A Polícia Civil realiza anualmente a Operação Colheita, medida preventiva para lidar com os impactos que uma população adicional de cerca de 12 mil pessoas irá causar ao longo de três meses em Vacaria, município de 61,3 mil habitantes, conforme o último Censo. Uma das medidas é o envio, pelos contratantes, de listas contendo a identificação completa dos safristas. Em 2023, a polícia checou os nomes de 9,5 mil trabalhadores sazonais.
— Sem dúvida, a maioria sai da origem com o contrato assinado. Quem nos manda as listas são os departamentos de recursos humanos das empresas, o que mostra que foram documentados e registrados — diz o delegado regional Carlos Alberto Defaveri.
Na safra deste ano, considerando a estimativa de ter reunido 12 mil temporários, reduzidos os 9,5 mil que foram previamente listados, restou um grupo de 2,5 mil que não foi checado pela Polícia Civil. Defaveri diz que esse contingente atua em empresas que optam por não enviar a lista, já que isso não é uma obrigação, mas também corresponde a um percentual de pessoas que ainda vai a Vacaria tentar a sorte, sem a contratação direta desde a origem, por vezes atraído por promessas de terceiros.
O que é jornalismo de soluções, presente nessa reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
O impacto dos mochileiros
Esse perfil, também conhecido por mochileiro, é o que costuma causar maior impacto social no município. Por motivos diversos, desde a eventual exploração por empreiteiros ou escassez de dinheiro, há casos de pessoas que acabam ficando pela rua, sobretudo no entorno da rodoviária, sem condição de retornar ao seu lugar de origem. Essa situação foi narrada em dissertação por Tiago Fedrizzi, mestre em Desenvolvimento Rural pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 2019, ele passou três meses nos Campos de Cima da Serra atuando junto aos safristas para observar as suas dinâmicas.
— Esse ônus fica para o município. Tem gente que não consegue voltar para o lugar de origem. As cooperativas de trabalho podem ser importantes para organizar e regularizar desde a origem, diminuindo o risco da relação com o empreiteiro, que não costuma ter responsabilidade alguma — avalia Fedrizzi.
O prefeito de Vacaria, Amadeu Boeira, afirma que o município custeia as passagens para safristas que se veem sem condições de sair.
— Empresas menores, às vezes, ainda deixam pessoal por aí. É melhor pagar a passagem de volta, mas também há os casos dos que não querem voltar — diz o prefeito.
Serviço médico e compras a preços justos
O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Vacaria e Muitos Capões oferece aos safristas, na sua sede, atendimento médico e odontológico gratuito.
— Muitas daquelas pessoas, nos seus locais de origem, não têm acesso a dentista. Chega a ser inusitado consultarem em Vacaria porque o sindicato disponibiliza — afirma Tiago Fedrizzi.
Na Unidade de Pronto-Atendimento 24 horas, a prefeitura de Vacaria contabiliza entre 150 e 180 pacientes atendidos diariamente em tempos de demanda normal. Na época da safra, o indicador passa dos 300. O impacto leva o município a dobrar o número de médicos disponíveis no local, de três para seis, relata o prefeito Boeira.
Outro aspecto que costuma ser problemático no trabalho rural é o serviço de cantinas no entorno de alojamentos de safristas. Como eles ficam hospedados dentro de fazendas, longe dos centros urbanos, há locais que permitem o comércio de produtos, por vezes operados por empreiteiros. Ocorre que, em muitos casos, itens como cigarros, bolachas e refrigerantes são vendidos a preços acima dos de mercado.
Fedrizzi constatou essa prática em sua investigação em 2019. A relação com as cantinas, diz ele, traz o risco de o trabalhador gastar em excesso ou até se endividar com o empregador ou empreiteiro – o que também foi denunciado no caso de Bento Gonçalves. O safrista vai adquirindo itens inflacionados, anotando no "caderninho" para futuro abate no salário, e corre o risco de perder o controle da situação.
Preços
No setor da maçã, contudo, os indicativos são de que essa prática está em extinção, principalmente nas grandes empresas.
— Anos atrás, tinha cantinas e deu muito problema. Os preços praticados eram desastrosos e houve fiscalização. Não tenho conhecimento de nenhuma empresa que ainda tenha. Não existe mais — afirma Sergio Poletto, presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Assalariados Rurais de Vacaria e Muitos Capões.
Celso Zancan, diretor da Rasip, diz que as cantinas foram "abolidas". Como alternativa, a indústria da fruticultura fez acordo com um mercado da região que, periodicamente, desloca até o alojamento uma van com produtos demandados pelos trabalhadores.
— O nosso compromisso é verificar se estão praticando preço justo. No restante, é uma relação entre o mercado e o consumidor — detalha Zancan.
A Operação Colheita, da Polícia Civil, iniciada em 2010, também é avaliada positivamente pelas partes envolvidas. Antes dela, houve incidentes, furtos, lutas corporais sangrentas e até homicídios nos períodos de safra. A região sentia o impacto social do fenômeno laboral. Indivíduos com pendências judiciais, inclusive com mandados de prisão, buscavam trabalho nos pomares como forma de se refugiar, diz o delegado regional.
No primeiro ano da operação, quando as empresas passaram a mandar as listas de safristas, foram apreendidas 90 pessoas nos pomares com mandado de prisão vigente. Em 2023, esse contingente caiu para 10.
— Melhorou para a comunidade e para os trabalhadores. Em 2022, o número de ocorrências policiais envolvendo safristas da maçã em Vacaria foi de 0,25% do total. É um número pífio — afirma o delegado.