Estruturas em alvenaria, dormitórios limpos, cozinhas com três refeições diárias, banheiros, chuveiros elétricos, salários e garantias definidas em convenção coletiva são indicativos do tratamento digno dado aos safristas atualmente na colheita da maçã, nos Campos de Cima da Serra.
Em uma época de expansão dos pomares na década de 1990, a realidade dos safristas era diferente. Trabalhadores atuavam em condições precárias e insalubres. Acesso a banheiro e água corrente era eventual. Naquele período, proliferaram denúncias e autuações, inclusive por trabalho infantil.
A evolução nestes 30 anos das condições do trabalho sazonal no município de Vacaria e região, onde ficam algumas das principais produtoras do fruto no Brasil, indica que há caminhos para qualificar as contratações e estabelecer relação justa de trabalho. Confira nas reportagens a seguir:
Abaixo, leia a reportagem que abre a série:
No campo, mas sem isolamento: acesso à internet é acréscimo à estrutura que acolhe safristas da maçã
A evolução das condições do trabalho sazonal no município de Vacaria e região, onde ficam algumas das principais produtoras do fruto no Brasil, começou nos anos 2000. Mais recentemente, houve um acréscimo nas estruturas: a adoção de wi-fi nos alojamentos instalados junto aos pomares, em zonas rurais que, no passado, não tinham sinal. Em consequência disso, os safristas ficavam no período da colheita – entre janeiro e abril – sem contato com os familiares que permaneciam no local de origem.
— Hoje, se não tiver wi-fi, não segura mais ninguém para trabalhar. Todos os nossos alojamentos têm internet livre — afirma André Luiz Werner, engenheiro agrônomo e responsável técnico da Agropecuária Schio, maior produtora de maçã do Brasil, com 3,1 mil hectares de área plantada em 10 unidades espalhadas pelos Campos de Cima da Serra.
O safrista Francivaldo Ferreira Lima, de Anajatuba, no Maranhão, recrutou 200 conterrâneos para trabalharem na colheita da maçã na Schio – no total, a agropecuária contratou cerca de 3,5 mil trabalhadores sazonais em 2023 para o período de maior necessidade de mão de obra.
Lima diz receber pagamento adicional da empresa por arregimentar força de trabalho e comenta sobre a experiência de ter, além da garantia de alojamento, alimentação e remuneração, o acesso à internet no cotidiano de labor, a mais de 3 mil quilômetros de distância da esposa e dos três filhos.
— O telefone é o escape para matar a saudade. Faço chamadas de vídeo todos os dias — conta Lima, que atua desde 2018 na Schio.
A disponibilidade do wi-fi também é apontada pelos próprios empreendedores como um item de transparência na relação, até mesmo para eventuais reclamações ou denúncias.
Avanço
Não são apenas os empresários que veem evolução: sindicalistas e fiscais asseveram que o cenário é, atualmente, de trabalho decente nos principais pomares.
— Visitei Juazeiro (Bahia) e Petrolina (Pernambuco) no ano passado e vi que estamos muito à frente. Eles não têm refeitório e ainda levam marmita (nas culturas da uva, manga e coco) — afirma Sergio Poletto, presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Assalariados Rurais de Vacaria e Muitos Capões.
Em 2023, ano em que o Estado testemunhou quase três centenas de trabalhadores sazonais serem resgatados em condições análogas à escravidão em Bento Gonçalves e em Uruguaiana, em lavouras de uva e arroz, as propriedades rurais de Vacaria e arredores indicam que há caminhos para qualificar as contratações e estabelecer relação digna de trabalho.
O que é jornalismo de soluções, presente nessa reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
Auditor fiscal e gerente do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em Caxias do Sul, Vanius Corte salienta a vantagem de que, no setor da maçã, a maioria dos safristas é contratada por empresas de grande porte que estão regularizadas e demonstram ter boas estruturas. Isso concentra a massa de mão de obra em empreendimentos que adotam práticas adequadas.
— Eles (produtores de maçã) podem ser uma referência positiva no sentido de que enfrentaram problemas e conseguiram se adequar. Não é lugar perfeito ou salvo-conduto, mas as questões graves eles superaram — diz Corte.
A Procuradoria-Geral do Trabalho (PGT) pondera que não há setor plenamente regularizado. Dados do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul (MPT-RS) indicam dois resgates de safristas em condições análogas à escravidão no setor da maçã, ambos no município de Bom Jesus, um em 2012 e o outro em 2022, com 121 resgatados.
No passado, denúncias
A colheita da maçã já passou por períodos críticos no Estado. A fruticultura foi introduzida em Vacaria em meados da década de 1970. Mais de 900 metros acima do nível do mar, o município tem clima frio propício ao cultivo.
Dados da Associação Brasileira de Produtores de Maçã (ABPM) mostram que a década de 1990 começou com a colheita de 130 mil toneladas no Rio Grande do Sul, em 1992. Em 1998, o volume já havia saltado para 317 mil toneladas.
Era uma época de expansão dos pomares, mas a realidade dos safristas era diferente. Trabalhadores eram transportados até a lavoura em paus de arara, os locais para refeição eram barracos de lona, havia precariedade no acondicionamento de marmitas, o piso era de chão batido e não era corriqueiro fazer o registro de contrato de trabalho. Acesso a banheiro e água corrente era eventual. Naquele período, proliferaram denúncias e autuações, inclusive por trabalho infantil.
— Tivemos problemas, mas, na década de 2000, sentiu-se a necessidade de adequação. Antes disso, um terceirizador (empreiteiro) de mão de obra trazia pessoas a Vacaria e depois se tentava achar lugar para trabalhar. Hoje, com a decisão de contratar o trabalhador desde a sua cidade de origem, são reduzidos os problemas — afirma Elói Poltronieri, servidor da Emater e ex-prefeito de Vacaria.