O número de pessoas que foram resgatadas em condições análogas à escravidão no Rio Grande do Sul teve crescimento expressivo nos últimos anos: em 2022, foram 156 trabalhadores encontrados nessa condição no Estado — até então o recorde na série histórica iniciada em 2005, conforme dados do Ministério do Trabalho e Emprego (veja o gráfico abaixo).
Já em 2023, apenas nos dois primeiros meses, os números já superaram a soma de todo o ano passado. Somente no caso mais emblemático, em Bento Gonçalves, na Serra, foram 207 pessoas resgatadas — a maior quantidade em uma única fiscalização. Há ainda a investigação sobre uma idosa que foi encontrada em um hotel na cidade de Garibaldi após ficar 44 anos desaparecida.
O resgate em Bento supera as 80 pessoas que foram encontradas em abril de 2022 em Bom Jesus, também na serra gaúcha, após serem constatadas as péssimas condições de alojamento e irregularidades na contratação dos funcionários para colheita da maçã.
Para o auditor-fiscal do trabalho Henrique Mandagará, o Estado vive uma "explosão" de casos nos últimos anos, algo que pode ser atribuído à forma como a sociedade está lidando com a divulgação desses casos.
— Em 2020, teve um caso muito emblemático de uma doméstica que foi resgatada na Bahia, a Madalena, e que teve uma grande repercussão na mídia. A partir dali, é visível a tomada de consciência da população para o tema da escravidão moderna. Desde lá, a gente foi muito demandado, recebendo muito mais denúncias e de qualidade — avalia.
O crescimento na quantidade de denúncias se reflete nos dados do Ministério Público do Trabalho (MPT-RS). De 2020 a 2021, houve aumento de 32% no número de denúncias enviadas, indo de 53 para 70. Já de 2021 para 2022, o salto foi ainda maior, subindo para 121, o que corresponde a 72,8%. Em 2023, o balanço parcial até 15 de fevereiro acumulava 16 denúncias.
Segundo Mandagará, a maioria dos resgates costuma ser de trabalhadores rurais, mas há outros tipos de ocorrências aumentando entre os resgatados no Estado.
— A gente nota uma tendência no aumento de casos de trabalho escravo doméstico. Aqui no Rio Grande do Sul, a gente teve um resgate de uma trabalhadora doméstica. No Brasil, em 2022, foram 30 casos. Também tivemos resgates em incorporadoras e empreendimentos imobiliários e até de um clube de futebol — comenta.
O último caso citado pelo auditor ocorreu em dezembro de 2022 e foi mostrado em reportagem da RBS TV. Sete jovens, com idades entre 15 e 23 anos, foram resgatados de uma casa que funcionava como alojamento em Teutônia, no Vale do Taquari, em condições análogas à escravidão. De acordo com a investigação, eles vieram de outros Estados para se tornarem jogadores de futebol, e o clube se aproveitava da vulnerabilidade dos aspirantes para explorá-los.
Falta de auditores desafia atendimento
Apesar do aumento de denúncias e da conscientização da população, a fiscalização enfrenta outra dificuldade para coibir o cenário do trabalho análogo à escravidão: a falta de auditores para os atendimentos. Segundo Mandagará, o último concurso para o cargo no Brasil ocorreu em 2013, com cem vagas disponíveis. Ele afirma que o quadro atual do país conta com 1.952 auditores, sendo 135 no Rio Grande do Sul.
— A gente está em uma situação bem complexa, com muita demanda e novo efetivo bem reduzido. Estamos com uma carreira envelhecida e poucas pessoas disponíveis para fiscalização, o que faz com que a gente tenha que selecionar algumas denúncias para atender. Nos causa frustração — analisa.
O auditor explica que, na prática, o Estado tem cerca de 10 auditores atuando diretamente na fiscalização, enquanto o ideal seria o dobro disso.
Serra concentra os municípios com mais infrações
No ano passado, foram realizadas 19 fiscalizações no Estado para verificação de irregularidades e, em 11 delas, houve resgates. Segundo dados do MPT divulgados em janeiro, o Rio Grande do Sul ocupa o quarto lugar no ranking nacional em número de trabalhadores resgatados e o 10º lugar em número de ações de combate realizadas.
Se analisadas as informações do Ministério do Trabalho e Emprego, o ranking dos 15 municípios gaúchos com mais autos de infração lavrados de 2005 a 2022 mostra sete cidades da Serra. No entanto, o primeiro lugar é do Vale do Rio Pardo, com Venâncio Aires somando 68 registros.
Cada auto de infração é por uma irregularidade. Normalmente, um resgate terá dezenas de autos de infração — como não pagar salário e descumprir limite de jornada, por exemplo. Conforme Mandagará, uma das irregularidades é reduzir trabalhadores à condição análoga à de escravo.
Os municípios com mais autos de infração lavrados no RS - de 2015 a 2022*
- Venâncio Aires - Vale do Rio Pardo - 68
- São Borja - Fronteira Oeste - 62
- São Francisco de Paula - Serra - 57
- Caxias do Sul - Serra - 56
- Cacequi - Central - 37
- Vacaria - Serra - 36
- Quaraí - Fronteira Oeste - 35
- Ipê - Serra - 32
- Mostardas - Sul - 29
- Anta Gorda - Vale do Taquari - 29
- Cambará do Sul - Serra - 28
- Bom Jesus - Serra - 28
- Triunfo - Região Metropolitana (Carbonífera) - 25
- Uruguaiana - Fronteira Oeste - 24
- Campestre da Serra - Serra - 21
*Fonte: MTE
A Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE) do MTE também divulgou, em janeiro deste ano, uma avaliação do perfil social das pessoas resgatadas de escravidão contemporânea no Rio Grande do Sul em 2022. Os dados mostram que 96% eram homens; 37% tinham entre 18 e 24 anos; 74% se autodeclararam negros ou pardos, 17% brancos e 9% de indígenas.
Sobre os locais de onde estas pessoas vieram, o levantamento aponta que 55% residiam no Nordeste e 60% eram naturais dessa mesma região. Também houve resgate de seis trabalhadores migrantes estrangeiros, sendo quatro argentinos e dois paraguaios. Em relação ao grau de instrução, 19% declararam ter até o 5º ano incompleto, e 3% dos trabalhadores eram analfabetos.
Já as atividades econômicas em que mais houve exploração de mão-de-obra em condição análoga à escravidão no Estado em 2022, quanto ao número de resgatados, foram o cultivo de maçã (80), atividades de apoio à pecuária (26) e o cultivo de arroz (16).
Como denunciar
Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma remota e sigilosa no Sistema Ipê. A ferramenta foi lançada em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).Também é possível informar casos pelo Disque Direitos Humanos no número 100, e para autoridades policiais do município.