O corregedor-geral da Brigada Militar, Vladimir Luís Silva da Rosa, deve chegar na Serra nesta quarta-feira (1º) para acompanhar a investigação sobre os supostos policiais militares envolvidos na coação e cobertura do caso de 207 trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves. A informação foi divulgada pelo secretário estadual de Segurança Pública, Sandro Caron, ao Gaúcha Mais, na tarde desta terça (28).
Caron afirmou que a Corregedoria-Geral da BM já está em contato com a Polícia Federal para que haja o compartilhamento de provas, para que seja feita a investigação dos envolvidos em paralelo à apuração do crime federal de trabalho escravo.
— Não compactuamos com nenhum tipo de desvio de conduta. Deixamos bem claro a nossa total disposição para colaborar neste caso. Nós não recebemos ainda esses depoimentos, (eles virão) dentro desse nosso pedido de compartilhamento de provas. Vamos apurar a fundo, com vigor. Não temos ainda nenhum nome de policial envolvido. (Já estamos) Por conta própria realizando algumas diligências na Serra. — destacou o secretário.
Logo após a reportagem de Pioneiro e GZH, a Corregedoria-Geral abriu um inquérito para apurar os fatos.
— Nossa resposta será muito forte e que sirva de exemplo dentro dessa linha. A linha do Estado é de valorização do trabalho e, quem for para o crime, irá ter uma resposta — pontua Caron, que caracterizou os fatos como "repugnantes".
Por fim, o secretário explicou no programa da Rádio Gaúcha que todo servidor público que tiver conhecimento de possíveis crimes, não deve omitir. A omissão, neste caso, é caracterizada como crime de prevaricação.
Entenda o envolvimento dos PMs
Nos depoimentos prestados às autoridades, alguns trabalhadores que fugiram disseram ter sido espancados e ameaçados de morte por PMs. Conforme os relatos, os policiais teriam um acordo com o proprietário do alojamento, pelo qual eram chamados para coagir e reprimir os safristas, em casos de brigas ou de reclamação.
Outro depoimento, feito por um safrista de 23 anos (que também fugiu do alojamento), dá nome aos supostos policiais. Ele diz que três trabalhadores foram agredidos por seguranças do alojamento porque reclamaram das condições. O suposto PM, que era identificado pelos trabalhadores do local como "sargento", teria dito que "quem reclamasse ou filmasse as condições da pousada seria morto". De acordo com o depoimento do safrista resgatado pela PF, outros que reclamaram já teriam sido assassinados.
Os depoimentos têm sido encaminhados para a Polícia Federal e para a Brigada Militar. Nos relatos, são mencionados dois soldados, mas o número pode ser maior, já que há outros indícios de que policiais fariam serviço particular para empresários da região serrana.
A reportagem conversou com safristas que abandonaram o alojamento e inclusive moram na rua, por não terem onde ficar. Eles reforçam que espancamentos e ameaças seriam feitos por policiais. Inclusive, alguns seriam chamados mesmo estando de serviço, uniformizados, para "resolver" problemas relativos a queixas ou brigas entre os trabalhadores. Alguns desses PMs teriam usado de armas de choque e cassetetes para agredir os queixosos.
Relembre o caso
O caso dos trabalhadores em situação análoga à escravidão foi denunciado após seis homens conseguirem fugir do local onde eram mantidos e buscar contato com a Polícia Rodoviária Federal, que prestou auxílio e deu início à operação. Um dos denunciantes já havia gravado vídeo com um celular e publicado em uma rede social reclamando das condições de trabalho. Ele relata que foi agredido pelos supostos empregadores por isso. O homem contou à polícia que aproveitou quando os agressores foram atender uma ligação e pulou de uma janela, correndo até um mato próximo do local onde estava. Ele e mais dois trabalhadores, que estavam com ele, aguardaram até as 3h da quarta-feira (22) para sair e pedir ajuda.
Ainda na quarta, uma operação conjunta de PRF, Polícia Federal (PF) e MTE flagrou 180 homens no alojamento, em situação precária de hospedagem, higiene e alimentação. À equipe, trabalhadores relataram que sofriam violência verbal, física, ameaças de morte e eram alimentados com comida estragada. Após o primeiro flagrante, outros 27 homens foram resgatados, na quinta, e encaminhados ao ginásio.
O aliciador da mão de obra e administrador da empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, Pedro Augusto Oliveira de Santana, chegou a ser preso ainda na quarta, mas foi liberado no dia seguinte após pagar fiança de R$ 39.060. Natural de Valente (BA), o empresário está sendo investigado. Ele trabalharia na região, com prestação de serviço, há pelo menos 10 anos, conforme o MTE.
Os homens resgatados atuavam, principalmente, na colheita da uva, em propriedades rurais do município. As três vinícolas — Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton —, citadas pelos trabalhadores e que contrataram o serviço terceirizado da prestadora, afirmaram em notas não ter conhecimento da situação em que os homens eram expostos até a operação, e que irão colaborar com a investigação. As investigações seguem com o MTE, Ministério Público do Trabalho (MPT) e Polícia Federal (PF).
Além de vinícolas, 23 proprietários rurais contratavam serviços de trabalhadores resgatados em Bento. Os nomes dos 23 não foram divulgados. A investigação ainda aponta que os trabalhadores atuavam na carga e descarga da uva em vinícolas e na colheita da uva nas propriedades rurais.
O que dizem as vinícolas?
Por meio de assessorias de imprensa, as três empresas publicaram comunicados.
O que diz a Aurora:
"NOTA OFICIAL
Em respeito aos seus associados, colaboradores, clientes, imprensa e parceiros, a Vinícola Aurora vem à público para reforçar que não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão e se solidariza com os trabalhadores contratados pela terceirizada Oliveira & Santana.
As vítimas são funcionários da Oliveira & Santana, empresa que prestava serviços às vinícolas, produtores rurais e frigoríficos da região.
A Aurora já se colocou à disposição das autoridades para quaisquer esclarecimentos e está prestando apoio às vítimas. A companhia também está trabalhando em conjunto com o Ministério Público Federal e com o Ministério do Trabalho para equalizar a situação em busca de reparo aos trabalhadores da Oliveira & Santana.
A vinícola está tomando as medidas cabíveis e reitera seu compromisso com todos os direitos humanos e trabalhistas, assim como sempre fez em seus 92 anos. Ratifica ainda que permanece cumprindo com suas obrigações legais e com a sua responsabilidade também perante ao valor rescisório a cada trabalhador contratado pela Oliveira & Santana.
A Aurora conta com 540 funcionários, todos devidamente registrados e obedecendo a legislação trabalhista. Porém, na safra da uva, dentro de um período de cerca de 60 dias, entre janeiro e março, a empresa depende de um grande número de trabalhadores, se fazendo necessária a contração temporária para o setor de carga e descarga da fruta, devido à escassez de mão de obra na região.
Quanto à empresa terceirizada, cabe esclarecer que a Aurora pagava à Oliveira & Santana um valor acima de R$ 6,5 mil/mês por trabalhador, acrescidos de eventuais horas extras prestadas. A terceirizada era a responsável pelo pagamento e pelos devidos descontos tributários instituídos em lei. A Aurora também exigia os contratos de trabalhos da equipe que era alocada na empresa.
Todo e qualquer prestador de serviço da Aurora, da mesma forma que os funcionários, recebe alimentação de qualidade durante o turno de trabalho, como café da manhã, almoço e janta, sem distinções.
A vinícola também oferecia condições dignas de trabalho no horário de expediente e os gestores responsáveis desconheciam a moradia desumana em que os safristas eram acomodados pela Oliveira & Santana após o período de trabalho.
Por fim, ratificando seu compromisso social, a Aurora se compromete em reforçar sua política de contratações e revisar os procedimentos quanto à terceiros para que casos isolados como este nunca mais voltem a acontecer."
O que diz a Salton:
"Comunicado Salton
Em respeito aos seus colaboradores, clientes, acionistas, fornecedores e toda a sociedade, a Salton manifesta profundo lamento e total repúdio a qualquer ato de violação dos direitos humanos e trabalho sob condições precárias e análogas à escravidão.
A empresa atua há mais de 100 anos guiada pelo rigoroso cumprimento das leis e pelo respeito aos direitos humanos, sociais e trabalhistas, possuindo diretrizes e processos formalizados para a contratação de fornecedores e prestadores de serviços, com práticas de gestão e acompanhamento do cumprimento da legislação, em especial em questões trabalhistas e sociais.
Nenhum dos trabalhadores resgatados era empregado da Salton e sim da prestadora de serviços Fênix, que atua na região da Serra Gaúcha, com sede em Bento Gonçalves há mais de 10 anos, fornecendo serviços não somente para empresas do setor vitivinícola, mas também para produtores rurais e empresas de outros setores, como aviários e frigoríficos. O resgate dos trabalhadores não ocorreu na Salton.
Prezando pela transparência de suas ações, a Salton ressalta que não possui qualquer atividade de colheita em Bento Gonçalves que demande mão-de-obra terceirizada. O contrato de prestação de serviços com a Fênix foi firmado unicamente com objeto de carga e descarga de caminhões em Bento Gonçalves.
A Salton promoveu a averiguação técnica para cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço e respeitou a integralidade das melhores práticas trabalhistas junto a estes trabalhadores.
A Salton possui uma estrutura de ouvidoria junto ao seu RH e canal de denúncia externo, que garante o anonimato do denunciante e está amplamente disponível nas dependências da empresa, tanto para colaboradores quanto para fornecedores. Não houve nenhuma denúncia sobre o tema.
A Salton tomará as medidas cabíveis, com toda a seriedade e respeito que a situação exige e trabalhará prontamente, não apenas para coibir acontecimentos com fornecedores e prestadores de serviços, mas também para promover a conscientização das melhores práticas sociais e trabalhistas. A empresa acredita na sustentabilidade como premissa de negócio e é signatária do Pacto Global da ONU, realizando diversos projetos para reforçar a responsabilidade social da empresa e seu compromisso como empresa cidadã.
A Salton ressalta que adotará medidas austeras para que os fatos sejam devidamente esclarecidos, de forma transparente e colaborativa junto às autoridades públicas.
Família Salton"
O que diz a Cooperativa Garibaldi:
"Nota à imprensa
Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa sob investigação no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada.
Com relação à empresa denunciada, o contrato era de prestação de serviço de descarregamento dos caminhões e seguia todas as exigências contidas na legislação vigente. O mesmo foi encerrado.
A Cooperativa aguarda a apuração dos fatos, com os devidos esclarecimentos, para que sejam tomadas as providências cabíveis, deles decorrentes.
Somente após a elucidação desse detalhamento poderá manifestar-se a respeito.
Desde já, no entanto, reitera seu compromisso com o respeito aos direitos – tanto humanos quanto trabalhistas – e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos."
O que diz a nota de esclarecimento enviada pelo advogado de defesa da Fênix
"NOTA DE ESCLARECIMENTO À IMPRENSA
Diante dos fatos noticiados em relação a operação de combate ao trabalho análogo à escravidão ocorrida na última quinta-feira, em Bento Gonçalves, a empregadora Fênix Serviços de Apoio Administrativo e seus administradores esclarecem que os graves fatos relatados pela fiscalização do trabalho serão esclarecidos em tempo oportuno, no decorrer do processo judicial.
Cabe mencionar que o empresário envolvido nas acusações é um empreendedor de atuação reconhecida e respeitada, não compactuando com qualquer desrespeito aos colaboradores e aos direitos a eles inerentes.
Além disso, é importante ressaltar que qualquer conclusão neste momento é meramente especulativa e temerária, uma vez que os fatos e as responsabilidades devem ser esclarecidas em juízo.
Manifestamos total respeito às instituições e nos colocamos à disposição da Justiça para todos os esclarecimentos necessários, colaborando no que for necessário para o restabelecimento da verdade e principalmente do bem-estar de todos os envolvidos. Por fim, informamos que os trabalhadores estão recebendo todo o auxílio necessário para que esta situação não traga maiores prejuízos aos mesmos.
Rafael Dorneles da Silva"