O nono dia de júri da boate Kiss, que julga a responsabilidade sobre as 242 mortes ocorridas no incêndio na casa noturna de Santa Maria, em 27 de janeiro de 2013, foi um dos mais movimentados e emocionantes até agora. Três réus foram interrogados: Luciano Augusto Bonilha Leão, 43 anos, produtor da banda Gurizada Fandangueira, Mauro Hoffmann, 55, sócio da Kiss, e Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista. Depois dos depoimentos, iniciaram-se os debates da acusação e das defesas.
Antes de começar a falar sobre a noite do incêndio, Leão abraçou a mãe e as irmãs. Foi ele quem comprou o artefato pirotécnico em uma loja de Santa Maria — numa sacola, fora da caixa. Ele assegura que jamais teve informação de que o produto não poderia ser usado indoor (dentro de ambiente fechado). Um deles foi instalado em cada lado do palco e outro, na mão do vocalista da banda. Era um sistema por controle remoto, que Luciano acionou.
— Os músicos não iriam se queimar. Nunca alguém falou que era arriscado. Como é que as pessoas chegavam perto, até cantavam junto do músico que estava com o artefato? — questionou.
O réu disse que não iria responder a questionamentos do Ministério Público, por terem dito que ele é responsável pelo incêndio. Falou não aceitar isso:
— Não tenho sentimento? O Ministério Público deveria defender o povo. Tiveram nove anos para me ouvir, não acreditaram em mim.
O réu também mandou uma mensagem aos familiares dos mortos na Kiss.
— A luta deles é legítima. Minha mãe é a maior joia da minha vida. Se eu tivesse morrido, ela não teria a escolha de pensar se o filho é assassino ou inocente. Mas tenho a consciência de que não queria a tragédia, sou inocente. Mas se for para tirar a dor desses pais, que me condenem — afirmou.
Depois de Luciano, falou Mauro Hoffmann, o Maurinho, que era dono da Absinto Hall e virou sócio da Kiss, mas não participava das decisões cotidianas da boate, segundo relatou ao juiz Orlando Faccini Neto.
Sobre a Kiss, disse que tinha crédito e ingressou com R$ 200 mil à vista na sociedade, mais seis parcelas de R$ 50 mil, a partir de 2011. E faturava de R$ 15 mil a R$ 20 mil mensais com essa danceteria. Fez isso por segurança, caso perdesse a Absinto Hall (que fora intimada a sair do shopping onde ficava).
— Eu não vou me envolver, condicionei ao Kiko (Elissandro Spohr, também réu no caso). Tu vai receber a mais para ser administrador. Eu não tinha tempo, ia para o restaurante no final da manhã, de tarde ia para a Absinto Hall, saía oito ou nove da noite — falou.
Hoffmann assegura que exigiu que a Kiss tivesse documentação em dia — não tinha alvará dos bombeiros, mas aí ele foi providenciado. Então o empresário propôs um pró-labore para Kiko administrar o cotidiano da boate.
O último dos acusados a depor nesta quinta-feira foi o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos. Ele chorou durante o depoimento, quando relatou a sua história de vida e contou que pensava em sair da banda. Marcelo confirmou que os artefatos pirotécnicos eram comuns nos shows da Gurizada Fandangueira. Inclusive na Absinto, a outra boate de Mauro Hoffmann.
Marcelo relembrou a noite da tragédia e disse que a mulher decidiu não acompanhá-lo. Afirmou que, quando começou o fogo, tentou apagar com um extintor. Não funcionou. Então outros músicos jogaram água no fogo. Nada:
— Eu tive uma chance só de apagar o fogo, e não consegui.
Questionado sobre os extintores, se estavam com peso correto, ele disse que não tinha como saber. Também descreveu que saiu da Kiss com ajuda do irmão. Marcelo também relatou uma série de dificuldades, problemas de saúde e situações de preconceito na cidade por ser vocalista da banda. Ele disse que não vive, mas sobrevive.
— Dia 27 nunca saiu de mim. Ninguém merece ficar nove anos sofrendo. Acordo e durmo pensando no dia 27. Nada mais faz sentido. Uma das minhas filhas, de seis anos, chegou um dia da escola e falou baixinho no meu ouvido: “Pai, tu matou o tio do meu colega?”. Abracei ela e dei um beijo — disse.
Promotoria pede condenação por dolo
Na manifestação da acusação, a promotora Lúcia Callegari reproduziu em frente aos jurados um delicado vídeo em que dezenas de corpos de frequentadores da Kiss, mortos e dispostos lado a lado, estavam acomodados em um ginásio, metade coberta por sacos plásticos, aguardando identificação enquanto seus telefones celulares tocavam repetidamente. Eram os pais em busca de notícias. Na sequência, ela apresentou um segundo vídeo gravado por uma vítima dentro da boate, no qual havia escuridão e gritos.
— Façam aquilo que os senhores deveriam fazer para os seus filhos — asseverou a promotora Lúcia, encerrando sua manifestação perante os jurados.
Ela também retomou o depoimento de um segurança chamado “Baby”, que relatou ter sido orientado a ajudar a segurar a porta da boate para evitar que os clientes saíssem sem pagar a comanda, pois ele teria achado que era princípio de tumulto. Ela ressaltou que os réus assumiram os riscos de matar com condutas imprudentes.
A fase dos debates foi aberta pela exposição do promotor David Medina da Silva. Ele afirmou que a aplicação de uma pena branda para um caso pode ocorrer se os crimes atribuídos aos réus forem rebaixados do dolo eventual, quando se assume o risco de matar, para o delito culposo, sem intenção.
O promotor afirmou, olhando para os jurados, que o caso da Kiss não irá gerar pena cumulativa pela quantidade de vítimas e que, caso seja classificado como culposo, a penalização prevista é de um a três anos de reclusão, com possibilidade de substituição por prestação de serviços comunitários ou sanção pecuniária. Já se for acatada a acusação de homicídio com dolo eventual, o promotor anunciou que a pena pode variar entre seis e 20 anos de prisão, com hipótese de acréscimo de mais 10 anos.
Medina comparou o caso da boate com um motorista imprudente que atropela e mata e que, neste caso, o fato de estar no local não retira o dolo eventual.
— Vamos parar com essa história de que estavam lá dentro (da boate) e, por isso, não pode ser dolo — reforçou.
Ele disse que o dolo dos quatro réus seria consequência do que definiu como “indiferença”. Para ele, os acusados tentaram repassar responsabilidades desde o dia da tragédia.
O assistente de acusação, Pedro Barcellos, destacou que, para além das falhas da Kiss, o trágico incêndio não aconteceria sem as condutas dos réus Luciano Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos, da banda Gurizada Fandangueira. O primeiro comprou e acendeu, e o segundo brandiu o artefato pirotécnico dentro da boate.
Encerrada a manifestação do Ministério Público, os debates entraram em recesso de uma hora. Na sequência, as defesas dos quatro réus tiveram duas horas e meia para apresentar suas conclusões, ou 37,5 minutos para cada um deles.
O que falaram as defesas
O primeiro advogado de defesa a se manifestar nos debates do júri da boate Kiss foi Jader Marques, que lidera a defesa do réu Elissandro Spohr, o Kiko, um dos sócios do estabelecimento em que morreram 242 pessoas em Santa Maria.
As defesas dos quatro réus tiveram duas horas e meia para apresentar os argumentos, o que representou 37,5 minutos para cada um dos acusados. Marques refutou a tese de que seu cliente seja "ganancioso", o que ele apontou ter sido repetido exaustivamente no júri pela acusação do Ministério Público.
O defensor do proprietário da Kiss defendeu a desclassificação do caso da condição de dolo eventual, quando assume-se o risco de matar, o que acarreta penas mais pesadas.
— Quando eu falo em ausência de dolo eventual, eu estou dizendo que ele não assumiu o risco de produzir o resultado. E não aceitava esse resultado — asseverou Marques, indicando que se tratou de caso acidental, incêndio seguido de mortes.
O advogado pediu que seu cliente seja julgado por crime culposo, sem intenção, o que redunda em penas menores.
— Não quero (absolvição). Meu pedido é de desclassificação (do dolo eventual) — pleiteou.
O advogado ainda reforçou a tese de que a Kiss estava com as documentações em dia, seja perante o Corpo de Bombeiros, a prefeitura de Santa Maria e o Ministério Público, que tinha finalizado um termo de ajustamento de conduta (TAC) com a Kiss para conter a poluição sonora. A exposição foi de que, se estava com os papeis e fiscalizações em dia, o seu cliente não assumiu nenhuma situação de risco.
— Eu acuso o Estado e o município como responsáveis — afirmou.
Depois da defesa de Spohr, falou a defesa do vocalista Marcelo de Jesus dos Santos, da banda Gurizada Fandangueira. Coube à defensora Tatiana Borsa fazer a apresentação das teses em favor do réu.
Ela se emocionou no princípio relatando que é de Santa Maria, onde ocorreu a tragédia, e descrevendo a dor que atingiu a cidade.
— Todos nós somos culpados desse crime. A gente não exige o que temos de exigir —declarou Tatiana.
A advogada contestou a tese de que seu cliente assumiu o risco de matar ao reproduzir uma foto do ex-gaiteiro da banda Gurizada Fandangueira, Danilo, morto após a tragédia na Kiss.
— Será que o Marcelo e o Luciano (Bonilha Leão, também réu) gostariam de fazer aquilo que está no foto? — indagou a advogada, ressaltando que seu cliente era amigo do falecido gaiteiro.
Ela reforçou que seu cliente "nunca aceitou qualquer morte lá dentro". Ela classificou como "patético" o que definiu como fuga de responsabilidade pelo poder público.
— Os órgãos públicos estão aí. A gente os elege para isso, para nos cuidar, nos dar segurança, e não vir aqui (no júri) se eximir — afirmou a defensora, que também citou a vida humilde do réu.
Ela pediu que Marcelo de Jesus dos Santos seja absolvido e salientou que ele poderia ter morrido na Kiss.
— Não existe dolo, não houve intenção. Foi uma fatalidade, um acidente.
O advogado Mario Cipriani foi o terceiro a fazer sustentação nos debates do júri da Kiss, nesta quinta-feira (9), em favor do seu cliente, o sócio da boate Mauro Hoffmann. O defensor disse que não se discute o fato de Hoffmann se sócio. Ele era, reconhece, mas assegura que a acusação do Ministério Público não demonstrou qual foi a conduta delituoso do seu cliente.
Ele afirmou que Hoffmann acreditou nos órgãos públicos que autorizavam o funcionamento da Kiss. Citou mais especificamente o termo de ajustamento de conduta (TAC) assinado com o Ministério Público para fazer obras de isolamento acústico, de forma a conter o ruído que incomodava vizinhança. Sustentou que Hoffmann, "acreditando" que a casa estava adequada após as obras, decidiu ingressar na sociedade. Cipriani definiu os quatro réus como "bois de piranha", colocados no banco dos réus supostamente para blindar terceiros.
— Eles (réus) têm alguma responsabilidade, mas o que aconteceu foi um acidente, uma sucessão de pequenas falhas que resultaram em algo dramático e não imaginado —declarou Cipriani.
Um segundo advogado da bancada de Hoffmann, Bruno Seligman, reforçou críticas ao Ministério Público e ao poder público. Citou áudio de ligações de vítimas da Kiss que discaram para a Brigada Militar durante a tragédia pedindo socorro diante do sinistro, mas a atendente dizia que deveria ligar para os bombeiros.
— Ministério Público denuncia Mauro Hoffmann pelo contrato social. E não por ação ou omissão — afirmou Seligman.
A defesa de Luciano Bonilha Leão, produtor de palco da banda Gurizada Fandangueira, foi a última a fazer sustentação nos debates do júri da boate Kiss, tendo início já próximo das 23h desta quinta-feira.
A primeira manifestação coube ao advogado Gustavo Nagelstein, que contou como a bancada ingressou na defesa de Bonilha Leão. Ele disse ainda que o réu saiu de casa para ganhar "míseros R$ 50" e que Bonilha Leão é um "inocente" que foi colocado para responder o caso no lugar de supostos agentes públicos que ali deveriam estar. A figura do réu como uma pessoa simples e humilde foi explorada.
— O Luciano é um boi de piranha. E os órgãos públicos, representados pelo prefeito, pelo promotor de Justiça e pelo comandante dos bombeiros, são os lobos. E lobo não come lobo. O que estamos vendo aqui é a maior injustiça que já vi na minha carreira jurídica — asseverou Nagelstein.
Ele passou a palavra ao seu colega de bancada Jean Severo, que se notabilizou no júri pelas sustentações performáticas, aos berros e em termos populares. Severo começou dizendo que o juiz Orlando Faccini Neto, presidente do júri, será o próximo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). E emendou afirmando que o Ministério Público passou uma "vergonha horrenda" no júri.
Severo rasgou a página de um livro, deu um pontapé numa pilha de folhas dos processo e disse que a única coisa que pesa contra Bonilha Leão é o depoimento do dono da loja de fogos Kaboom, onde seu cliente adquiriu os fogos que iniciaram o incêndio na Kiss.
— O que levou o Luciano para o banco dos réus foi o depoimento de um vagabundo da Kaboom, um fogueteiro, uma mentira desse crápula — bradou Severo, alegando que em um longo processo supostamente havia poucas referências ao seu cliente.
Afirmou que a loja vendia artefatos unitários, sem as instruções técnicas de uso.
O júri será retomado às 10h desta sexta-feira. A votação dos jurados começa após o fim das manifestações de testemunhas e réus e dos debates da acusação e das defesas, o que deve ocorrer a partir das 15h30min.