Mauro Hoffmann, o Maurinho, foi o terceiro réu a depor no júri dos quatro acusados pela morte de 242 pessoas no incêndio da boate Kiss, ocorrido em 2013. O julgamento ingressou, nesta quinta-feira (9), em seu nono dia.
Hoffmann era dono da Absinto Hall e virou sócio da Kiss, mas não participava das decisões cotidianas da boate, segundo relatou ao juiz Orlando Faccini Neto. O magistrado ofereceu ao réu a oportunidade de não falar, se assim desejasse, mas ele recusou a oferta:
— Tô aqui para responder. É uma oportunidade que a gente tem para esclarecer.
O acusado começou o depoimento rememorando toda sua trajetória na noite de Santa Maria. Disse que tirava até R$ 50 mil mensais com a Absinto Hall. Tinha também um restaurante e uma lancheria. Falou que gostava tanto do que fazia que acordava e já ia para o trabalho. Da manhã à madrugada.
— Não era só trabalho, era diversão. Eu conhecia a balada. Vivia disso, era daí que eu tirava o sustento da família. Dava uma olhada nas boates, via como estava, tirava uma febre.
Sobre a Kiss, disse que tinha crédito e ingressou com R$ 200 mil à vista na sociedade, mais seis parcelas de R$ 50 mil, a partir de 2011. E faturava de R$ 15 mil a R$ 20 mil mensais com essa danceteria. Fez isso como segurança, caso perdesse a Absinto Hall (que fora intimada a sair do shopping onde ficava).
— Eu não vou me envolver, condicionei ao Kiko (Elissandro Spohr, também réu no caso). Tu vai receber a mais para ser administrador. Eu não tinha tempo, ia para o restaurante no final da manhã, de tarde ia para a Absinto Hall, saía 8h ou 9h da noite.
Hoffmann assegura que exigiu que a Kiss tivesse documentação em dia — não tinha alvará dos bombeiros, mas aí ele foi providenciado. Então o empresário propôs um pro-labore para Kiko administrar o cotidiano da boate.
A respeito do problema de ruído, Hoffmann relatou que, ao saber que o caso estava no Ministério Público, desistiu da Kiss. Assegurou que não sabia da colocação da espuma no teto da casa noturna.
— Fui na casa do Kiko, que churrasqueava com os funcionários. Chamei ele num canto e reclamei, falei que não tinha sido isso que combinamos. "Tô fora, me devolve meu dinheiro", falei. Aí ele me disse que não tinha dinheiro para me devolver. Acenou com a possibilidade de falar com o pai dele, para parcelar a dívida.
Hoffmann afirmou ter aceito, relutante. Ele admitiu também que a banda Gurizada Fandangueira usou artefatos pirotécnicos, tanto na Absinto quanto na Kiss. Assegura que isso foi feito contra as normas dessas casas noturnas e que descobriu o fato só durante o julgamento.
— Não era permitido fogo de artifício, nem mosh (saltar sobre o público), nem cantar hino do Inter ou do Grêmio. Porque isso, para dar briga, é só um instante, todo mundo sabe. Então proibi — descreveu, a respeito de regras de postura.
Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, recordou ter acordado com telefonemas sucessivos, nos quais a frase mais repetida era “tá pegando fogo, tá pegando fogo”. Ele disse que “voou” com o carro até a boate, embora morasse longe.
— Cheguei lá e a situação era muito terrível. Fumaça, as pessoas tentavam sair e ficavam trancadas nos táxis. Uns caíam por cima dos outros, em cima dos veículos. Tudo atrapalhou, um acidente é sempre assim. Como a entrada da boate ficou trancada de tanta gente, os que tentavam sair não conseguiam.
Ele disse que viu cenas de horror. Pessoas com olhos brancos, morrendo pelo calor. Alguns estavam vivos e, em cinco minutos, morriam.
O réu disse que ficou até as 5h30min no local porque poucos sabiam que ele era sócio da boate.
— Minha mãe não sabia disso, a maioria das pessoas não sabia. Já o Kiko saiu antes, naquela madrugada, porque ele era o “Kiko da Kiss”. Por medo, imagino.
Questionado se ajudou financeiramente as vítimas, reconheceu que não fez isso.
— Eu queria ajudar as famílias. Não porque não tivesse vontade, mas porque tive todos meus bens e contas bloqueados pela Justiça. Falavam que iam incendiar minha casa. Tive de fugir com minha família. Gerentes meus foram ameaçados de morte. Mesmo que quisesse, não seria ouvido por ninguém. Tenho vontade de ajudar, porque aquilo pelo qual as famílias lutam, eu entendo. Só temos perdedor aqui. Ninguém ganhou nada com isso, só perdeu — desabafou.
Hoffmann reclamou ainda de ter ficado quatro meses detido numa ala com presos perigosos, que tinha “esquartejador e assassino”. Sobre sequelas, disse que toma muito remédio, especialmente para tratamento psicológico. Inclusive não conseguiu dormir antes do depoimento desta quinta-feira.
A respeito das obras na boate, ele assegurou ter a impressão que estavam todas em dia.
— A gente imagina que o Ministério Público e bombeiros, tendo aprovado, está tudo certo. Eles têm fé pública, para usar uma expressão muito comum neste júri. Mas ninguém acredita no que a gente fala. Vou inventar tudo isso? Mesmo assim, nunca tentei fugir. Tinha viagem marcada e passagem internacional comprada para o domingo da tragédia, para mim e minha família. Mas não usei.
Hoffmann considerou que, até por segurança de sua vida, a prisão foi boa. Muita gente desejava o seu mal. Ele considera que o Ministério Público fez um conchavo para tirar as outras pessoas e deixar só os quatro réus.
Quase ao final do depoimento, o acusado desabafou.
— Ninguém é indiferente a essa tragédia. Eu me achava experiente, mas não consegui enxergar os defeitos que agora apontam, que as portas estavam erradas. Mas parece que querem que a gente arda no inferno, que more no inferno.
Foi o único momento em que Hoffmann chorou.
Em sua última manifestação, o réu sugeriu que se plantem árvores numa área dele, hoje embargada pela Justiça. Em homenagem aos mortos na boate.