Os debates entre acusação e defesa no júri da boate Kiss, última etapa antes de os jurados serem chamados a decidir sobre dolo eventual, culpa ou inocência dos quatro réus, revelaram atuação contundente do Ministério Público para impactar os jurados, demonstrar a dimensão da tragédia e alcançar a condenação de Elissandro Spohr, Mauro Hoffmann, Luciano Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos.
Na reta final das duas horas e meia de manifestação da acusação, a promotora Lúcia Callegari reproduziu em frente aos jurados um delicado vídeo em que dezenas de corpos de frequentadores da Kiss, mortos e dispostos lado a lado, estavam acomodados em um ginásio, metade coberta por sacos plásticos, aguardando identificação enquanto seus telefones celulares tocavam repetidamente. Eram os pais em busca de notícias.
A promotora reproduziu outro vídeo feito por uma vítima do interior da boate, depois do início do fogo e do espraiamento da fumaça tóxica. O telefone celular dessa pessoa foi encontrado e apreendido pela investigação. O que se viu nas imagens foi uma escuridão absoluta, com gritos e choros de crescente desespero e angústia, mesclados com o estrondo de coisas caindo e quebrando.
— Façam aquilo que os senhores deveriam fazer para os seus filhos — asseverou a promotora Lúcia, encerrando sua manifestação perante os jurados.
Nos últimos instantes do debate, ela questionou reiteradamente se os jurados gostariam de “entrar para a história” como alguém que portou a mensagem de que a sociedade não tolera a tragédia da Kiss ou como alguém que foi permissivo e passou a ideia do “não dá nada”.
Também nos momentos derradeiros, a promotora trouxe um fato que não havia aparecido até então no júri: o depoimento de um segurança da Kiss conhecido como “Baby”, falecido recentemente de covid-19, em um processo de ressarcimento de despesas decorrentes da tragédia que a União moveu contra os sócios da Kiss. A promotora reproduziu, no telão, o depoimento de Baby diante do juiz federal. O ex-empregado disse que Kiko o ajudou a “segurar um pouco a porta” da boate em meio ao início do incêndio.
Baby afirmou no depoimento, em 28 de abril de 2015: “E ele (Kiko) me fez, digamos, junto com ele a segurar um pouco a porta. Uns meses antes tinha saído uma festa lá e o pessoal…Deu um princípio de tumulto que queriam sair sem pagar a comanda. E ele achou que fosse isso aí”, afirmou Baby.
A promotora Lúcia explorou o fato novo trazido aos jurados.
— Se tem uma coisa que me revolta nesse processo é que várias pessoas foram impedidas de sair pelos seguranças. Tinha de pagar as comandas. Estamos falando em ganância. O Kiko se plantou na porta comigo (parafraseando Baby). Matou junto. Quantas pessoas poderiam ter sobrevivido? — bradou Lúcia, em atuação que, a essa altura, era enérgica e emotiva.
Ela definiu repetidamente que os réus assumiram os riscos de matar com condutas imprudentes e supostamente "insensíveis". Disse que eles "sempre acreditaram na sorte de que nada iria acontecer".
A fase dos debates, em que as partes apresentam suas teses finais para o convencimento dos jurados, foi aberta pela exposição do promotor David Medina da Silva.
Ele chamou atenção dos jurados para a hipótese de aplicação de uma pena diminuta para um caso bárbaro que resultou em 242 mortos e 636 feridos. Ele disse que isso poderá ocorrer se os crimes atribuídos aos réus forem rebaixados do dolo eventual, quando assume-se o risco de matar, para o delito culposo, sem intenção.
O promotor afirmou, olhando para os jurados, que o caso da Kiss não irá gerar pena cumulativa pela quantidade de vítimas e que, caso seja classificado como culposo, a penalização prevista é de um a três anos de reclusão, com possibilidade de substituição por prestação de serviços comunitários ou sanção pecuniária. Já se for acatada a acusação de homicídio com dolo eventual, o promotor anunciou que a pena pode variar entre seis e 20 anos de prisão, com hipótese de acréscimo de mais dez anos.
— Pensem qual dessas penas é mais proporcional — pediu o promotor.
Ele suscitou uma reflexão aos jurados. Uma análise que indicasse se as penas de um a três anos de reclusão, passíveis de conversão em prestação de serviços ou multa, são proporcionais às mortes de 242 jovens.
Medina da Silva usou reiteradamente o exemplo do motorista de carro que, com alguma conduta imprudente, atropela e mata uma pessoa, o que tem sido enquadrado como crime de dolo eventual. Ele descreveu que o motorista imprudente, assim como os envolvidos na Kiss, estão no local do sinistro, o que não o impede de ser punido com o dolo eventual.
— Vamos parar com essa história de que estavam lá dentro (da boate) e, por isso, não pode ser dolo — afirmou Medina da Silva.
Ele comentou que ninguém acusa os réus de terem desejado a tragédia, mas de terem assumido condutas que deram margem para o incêndio.
O promotor ainda afirmou que o dolo dos quatro réus seria consequência do que definiu como “indiferença”. Para ele, os acusados tentaram repassar responsabilidades desde o dia da tragédia, em 27 de janeiro de 2013.
— Eu não tenho culpa, a culpa é do sistema. Essas pessoas (réus) não têm condições de assumir seu erro — criticou o promotor.
Medina da Silva afirmou que a sinalização da boate era deficitária, que a casa operava com deliberada superlotação, que os extintores de incêndio não funcionaram porque eram usados supostamente para causar efeitos visuais nas festas e que uma espuma “barata” foi instalada por conta própria, expelindo a fumaça tóxica.
— Quem esses pais vão abraçar no próximo Natal? E no próximo? E no próximo? Não existe prisão maior do que a desses pais e mães. Não venham aqui chorar prisão (se referindo aos réus). Tem muita dor do lado de lá (familiares de vítimas). (...) Não existe prisão pior que a da Kelen — bradou Medina da Silva, citando uma das sobreviventes que esteve entre as primeiras depoentes do júri.
Kelen Ferreira tocou as pessoas ao prestar um depoimento contundente, logo no primeiro dia do julgamento, quando evidenciou ter sofrido mutilação na Kiss, com a perda de um pé e queimaduras graves.
O assistente de acusação, Pedro Barcellos, destacou que, para além das falhas da Kiss, o trágico incêndio não aconteceria sem as condutas dos réus Luciano Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos, da banda Gurizada Fandangueira. O primeiro comprou e acendeu, e o segundo brandiu o artefato pirotécnico dentro da boate.
A promotora Lúcia, além de ter reforçado as acusações contra Spohr, também apontou depoimentos indicando que Mauro Hoffmann era parte das decisões diárias da boate Kiss e que os membros da banda assumiram o risco ao comprar um fogo de artifício barato e inadequado, responsável por dar início ao sinistro.
Encerrada a manifestação do Ministério Público, os debates entraram em recesso de uma hora. Na sequência, as defesas dos quatro réus terão duas horas e meia para apresentar suas conclusões, o que dará 37,5 minutos para cada um deles.