Kellen Giovana Leite Ferreira era frequentadora da boate Kiss, em Santa Maria. Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, ela estava na festa que acabou com 242 mortos e 636 feridos após o incêndio. Ela estava acompanhada de sete amigos, dos quais três morreram. Chamada a depor na condição de sobrevivente no primeiro dia do júri da Kiss, nesta quarta-feira (1º), Kellen mostrou que carrega profundas marcas do sinistro. Ela queimou 18% do corpo e perdeu o pé. Hoje usa uma prótese. Precisou de 78 dias de internação no Hospital de Clínicas, em Porto Alegre, para se recuperar dos danos, embora jamais tenha se livrado das sequelas. No depoimento no Foro Central I, na Capital, local do júri, relatou traumas psicológicos, além dos físicos.
— Vivemos numa sociedade que exige corpo perfeito. Eu comecei um processo de aceitação do ano passado para cá. Eu tinha medo de sair nas ruas e as pessoas me julgarem. Só ano passado passei a usar short. Eu usava calça jeans até no calorão de 40 graus — afirmou Kellen, sobre ter perdido o pé.
Ela disse que, inicialmente, não entendeu o que estava acontecendo. Relatou que muitas pessoas passaram à frente dela, correndo.
— Eu me atinei a correr. Eu achei que fosse briga. (...) Quando eu cheguei na porta, eu caí. Nesse momento, senti meus braços queimarem, muito calor e um cheiro muito forte — recordou Kellen.
A sobrevivente afirmou que a casa estava superlotada, a ponto de existir dificuldade para caminhar no seu interior. Disse que ninguém avisou no microfone que um incêndio estava em andamento na boate. A promotora Lúcia Callegari, do Ministério Público, órgão de acusação, mostrou imagens de apresentações com fogos no interior da Kiss. A depoente confirmou que esse tipo de pirotecnia acontecia na casa.
A testemunha, universitária à época dos fatos, disse ter gastos elevados com próteses e equipamentos que precisa usar atualmente para auxiliar sua saúde, debilitada devido ao incêndio. Precisou ingressar na Justiça contra o Estado e a prefeitura de Santa Maria para obter auxílio financeiro. Dos réus, disse jamais ter recebido qualquer ajuda.
Respondendo a perguntas da promotora Lúcia e a uma intervenção da advogada Tatiana Borsa, do réu Marcelo de Jesus dos Santos, a sobrevivente foi confrontada com uma publicação sua em que se referiu ao episódio como “acidente”.
Ela confirmou que usava a expressão “acidente”, mas depois deixou de fazer isso. A sobrevivente declarou não ter conhecimentos jurídicos para distinguir qual a palavra mais adequada para se referir ao fato.
— Tem mais gente culpada pelo o que aconteceu. A fiscalização, os bombeiros, a prefeitura. O cliente dela (Santos) também é culpado. Não tem de tirar a culpa dele. Eu acho que ele é culpado — afirmou Kellen.
Respondendo ao promotor David Medina da Silva, do Ministério Público, a sobrevivente disse não ter encontrado indicações luminosas de saída no dia da tragédia. Comentou que o ambiente da Kiss era quente. Outro tema abordado foi sobre um documentário publicado às vésperas do júri pela defesa do réu Elissandro Callegaro Spohr, dono da Kiss. Kellen fez uma menção a isso de forma espontânea no depoimento e, depois, o Ministério Público retomou o assunto em questionamento. No vídeo, Spohr faz uma viagem de carro com seu advogado Jader Marques e conta sua história de vida, fala sobre o trabalho na Kiss e o incêndio. A sobrevivente disse que assistiu ao documentário e reagiu com indignação ao comentar a realização audiovisual da defesa do réu.
— Senti náusea, vontade de vomitar, foi um teatro enorme. Vítimas somos nós, que passamos por esse massacre — protestou Kellen, indicando suposta intenção dos réus em se colocarem igualmente como vítimas do sinistro.
O depoimento de Kellen durou cerca de duas horas, sendo encerrado às 22h10min. As quatro bancadas de defesa dos réus abriram mão de fazer perguntas à sobrevivente.
O júri da Kiss recomeça nesta quinta-feira (2), às 9h. Para o dia, é previsto o depoimento de mais seis testemunhas, dentre elas o engenheiro Miguel Pedroso. Ele foi o responsável pelo projeto de engenharia de reformas de isolamento acústico da boate Kiss, numa tentativa de conter os ruídos que incomodavam a vizinhança. No memorial descrito da intervenção, o profissional não recomendou a instalação de espuma inflamável no teto ou em qualquer outro ponto da boate.