O drama dos frequentadores da boate Kiss, que pegou fogo em Santa Maria em 2013 e resultou na morte de 242 pessoas, foi revivido nesta quarta-feira (1º) pela voz de uma sobrevivente. Kátia Giane Pacheco Siqueira, 29 anos, testemunhou perante o júri que vai decidir sobre a responsabilidade dos quatro réus acusados pelo incêndio da danceteria.
Ex-atendente da cozinha da boate, Kátia foi a primeira a depor no júri, que deve ser o mais longo da história gaúcha. A ex-funcionária ressalta que a boate tinha só uma saída, obstaculizada por barras metálicas de contenção. Serviam para dividir setores e manter a ordem na hora de fazer o pagamento. Kátia fala que era comum o uso de artefatos pirotécnicos na boate, presos a espumantes.
Ela lembra pouca coisa do início do incêndio, ocorrido em 27 de janeiro de 2013. Diz que a luz caiu e ouviu as palavras “fogo, fogo” e “briga, briga”, sem entender o que se passava. Percebeu a urgência da situação quando viu colegas pulando o balcão da cozinha, em fuga em direção a uma luz.
O problema é que uma multidão se dirigia em direção aos banheiros da boate, pensando que se tratava da saída, porque tinham iluminação de emergência. Ficaram presos e tentaram retornar, atropelando outras pessoas — entre elas, Kátia.
— A porta da cozinha era perto da porta dos banheiros. Eu tentava sair pela porta da frente e tinha gente imaginando que a porta do banheiro era a porta de saída. Então, ficava um empurrando o outro. Aí quando eu consegui gritar que era ao contrário eles viraram e começaram a fazer força para outro lado para tentar sair. Só que eu estava sem ar e acabei desmaiando lá dentro e acordei quando escutei as pessoas perguntando se tinha alguém ali.
Kátia afirma que acordou quando duas pessoas puxavam ela, mas tinha gente em cima dela e os resgatadores não conseguiam retirá-la.
— Iam me soltar lá dentro e eu simplesmente agarrei nas pernas de uma das pessoas, de um jeito que ela não conseguia se mover. Daí foi quando fizeram força para me puxar — descreve Kátia.
Ela diz que saiu de dentro da boate, encontrou colegas, conversou com eles, porque ainda estava se sentindo bem. Lembra de ter falado com Elissandro Spohr, o Kiko, um dos donos da boate. Ele perguntou se ela estava bem, se precisava de ajuda. Ela respondeu que não e ele foi ajudar outras pessoas.
Kátia foi levada de viatura policial até um hospital e ainda tentou falar com a mãe, pelo telefone, mas não conseguiu. Começou a sentir falta de ar.
— Apaguei ali e acordei 21 dias depois, em Porto Alegre, em outro hospital.
Kátia afirma que, antes de acordar, teve uma parada cardiorrespiratória e foi entubada às pressas. Ela chora ao recordar palavras que teria ouvido dos atendentes do hospital.
— Falaram que iriam tentar me desentubar de novo e, caso eu não resistisse, iriam me deixar morrer. Porque meu organismo tinha de reagir e ele não estava reagindo. Minha mãe estava do meu lado e falava: "filha, tu tem de reagir, faz força, batalha, não te abala”. Ela não deixava eu ver televisão, se aparecesse uma notícia ela trocava de canal para não me afetar. Dali em diante, ela estava sempre me apoiando. Daí foi quando coloquei na minha cabeça que queria viver. Fui me recuperando mais rápido.
Kátia teve 40% do corpo queimado no incêndio e realizou cinco cirurgias de enxerto de pele. Sofreu rejeições no tecido, pós-cirúrgicas, e foi preciso refazer os enxertos, com pele retirada das costas e coxas. Fez outras operações para apagar cicatrizes. A ex-funcionária também foi submetida durante anos a fisioterapias respiratórias. Não ficou com sequelas. Tomava morfina injetada para aguentar a dor.
Após sair do hospital, fez tratamento psicológico e psiquiátrico. A cada vez que ia em consulta, tinha dificuldade em falar sobre o acidente. Regredia, tinha crises de choro, descreve. Colocou na cabeça que não iria mais pensar no assunto. Não assistia mais TV. Quando perguntavam sobre queimaduras, eu dizia que era um acidente. Voltou a se preocupar agora, na hora de testemunhar. Não gosta da ideia de a filha passar por isso, me assistir.
Questionada pelo Ministério Público sobre o que acha dos réus, Kátia foi taxativa:
— Com todas as coisas que eles fizeram, com a elevação do palco, com a colocação de espuma, eles tentaram matar a gente.