O primeiro dia do histórico júri da boate Kiss, nesta quarta-feira (1º), trouxe o depoimento de sobreviventes do trágico 27 de janeiro de 2013, quando as fagulhas de um fogo de artifício atingiram a espuma que revestia o teto do palco, causando um incêndio e o espraiamento de fumaça tóxica, matando 242 pessoas e ferindo outras 636 em Santa Maria.
— Com todas as coisas que eles (réus) fizeram, com a colocação da espuma, eles tentaram matar a gente — afirmou a testemunha Kátia Giane Pacheco Siqueira, ex-funcionária da cozinha da casa de festas e primeira a prestar depoimento.
Pessoas que saíram vivas da boate foram ouvidas como sobreviventes no Foro Central I, em Porto Alegre, respondendo a perguntas do Ministério Público, órgão de acusação, e dos advogados de defesa dos réus Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, sócios da Kiss, e Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, da banda Gurizada Fandangueira.
Em cinco horas de depoimento, Kátia relatou que, na madrugada do sinistro, custou a entender o que estava ocorrendo. Alguns gritaram “fogo” e outros bradavam “briga”, no início do tumulto, com frequentadores já se empurrando. Ela acabou desmaiando no interior da Kiss e, ao acordar, recorda que duas pessoas perguntavam se tinha alguém ali para ser resgatado. Ela narrou ter se “agarrado nas pernas” de quem estava mais próximo. Depois de salva, foi levada a um hospital, em Santa Maria.
— Apaguei ali e acordei 21 dias depois, em Porto Alegre, em outro hospital — contou a testemunha, entre lágrimas.
Ela teve 40% do corpo queimado no incêndio e realizou cinco cirurgias de enxerto de pele. Kátia relatou que a boate tinha apenas uma saída, obstaculizada por barreiras metálicas. Também disse que jamais teve treinamento para evacuação em caso de incêndio, destacou que a casa estava lotada no dia da tragédia, com cerca de um mil clientes, e que era um “labirinto”, o que teria dificultado a evacuação.
— Eu mesma trabalhava lá e quase não consegui sair — afirmou a sobrevivente.
Tanto o Ministério Público quanto as defesas, ao questionar às testemunhas, fizeram a apresentação de reproduções da boate em terceira dimensão, além de vídeos do dia do incêndio e fotos da Kiss.
Nas manifestações das defesas, havia duas linhas mais claras em execução. A dos integrantes da banda, Santos e Leão, apontando que itens como espuma inflamável no teto e ausência de extintores foram importantes para a tragédia. À advogada Tatiana Borsa, defensora do réu Santos, Kátia confirmou que eram frequentes shows pirotécnicos no interior da boate.
Já as defesas dos sócios da Kiss, Spohr e Hoffmann, adotaram linhas distintas. O advogado Jader Marques, de Spohr, investiu em diversas questões sobre os extintores de incêndio. A testemunha disse que “ouviu falar que havia orientação para não deixar extintores em locais visíveis para não atrapalhar”. O defensor perguntou reiteradamente se ela tinha recebido diretamente essa recomendação e quem exatamente havia citado essa norma.
— Para mim, não tinha essa ordem (sobre retirar extintores) — respondeu Kátia.
A defesa de Hoffmann, seguindo a estratégia de dizer que ele era apenas investidor da casa, e não gestor, questionou se a testemunha teve convivência profissional com o sócio da Kiss.
— Ele (Hoffmann) nunca fez reunião com a gente — respondeu a ex-funcionária.
A defesa de Spohr ainda apresentou a versão de que ele teria sido o responsável por retirar Kátia de dentro da boate, o que a testemunha disse desconhecer. O advogado questionou se esse suposto resgate feito por Spohr era relevante para a sobrevivente. Ela respondeu que “não”.
A segunda depoente foi Kellen Giovana Leite Ferreira, 28 anos, frequentadora da Kiss. Ela ficou 78 dias internada no Hospital de Clínicas, em Porto Alegre. Queimou 18% do corpo e perdeu um pé no incêndio. Hoje usa prótese. Ela foi à boate com sete amigos, dos quais três morreram naquela madrugada. Ela conta ter ficado com trauma psicológico, além dos físicos.
— Vivemos numa sociedade que exige corpo perfeito. Eu comecei um processo de aceitação do ano passado para cá. Eu tinha medo de sair nas ruas e as pessoas me julgarem. Só ano passado passei a usar short. Eu usava calça jeans até no calorão de 40 graus — afirmou Kellen, sobre ter perdido o pé.
O ambiente transcorreu em certo clima de normalidade, apesar das circunstâncias dramáticas do episódio em julgamento. Pela manhã, o juiz Orlando Faccini Neto, que preside o júri, conduziu o procedimento de sorteio dos sete jurados que irão decidir, ao final, pela culpa ou absolvição dos réus.
Ao chegar ao local do júri, o réu Leão chorou e gritou ao alcançar a porta:
— Eu não sou assassino.
Ele passou mal, teve um pico de pressão alta e precisou de atendimento médico. Depois, foi liberado para ir ao plenário do júri. Em momento de maior altercação, o juiz que preside o júri admoestou com veemência um dos advogados de Leão por entender que ele fazia reiteradas perguntas sobre extintores que não tinham relação com a testemunha.
O júri será retomado nesta quinta-feira (2), às 9h, e a previsão para o dia é de que sejam ouvidos mais cinco sobreviventes.
Depoimentos
"Era um labirinto. Eu mesma trabalhava lá e quase não consegui sair"
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"Quando cheguei na porta, caí. Senti meus braços queimarem"
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