Um desenlace mais breve do que o esperado no depoimento das últimas quatro testemunhas permitiu que a fase dos interrogatórios dos réus começasse às 18h07min desta quarta-feira (8), oitavo dia de júri da boate Kiss, com a inquirição do acusado Elissandro Callegaro Spohr. Ele era o sócio que tocava o dia a dia da casa noturna em que um incêndio matou 242 pessoas e feriu outras 636 no dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria.
Antes dele, ocorreram dois depoimentos muito aguardados no julgamento: o de Cezar Schirmer, prefeito de Santa Maria na época da tragédia, e o de Ricardo Lozza, promotor de Justiça responsável pelo inquérito civil que estabeleceu um termo de ajustamento de conduta (TAC) para restringir a poluição sonora da Kiss, alvo de reclamações de vizinhos da casa noturna em Santa Maria.
Narrando os fatos que sucederam após o incêndio, Spohr entrou em desespero e declarou estar farto.
— Querem me prender, me prendam. Estou cansado — desabafou, em tom de voz mais elevado, intercalado com choro e engasgo, em uma cena forte.
Ele afirmou que perdeu amigos, funcionários e que recebeu mensagens de pessoas dizendo que ele deveria “se matar”. Nesses momentos, deixou de falar ao microfone do júri e se virou em direção às famílias das vítimas que acompanham no plenário. Disse que nunca desejou a tragédia e que a Kiss era uma boa casa de festas. Enquanto Spohr se justificava, aos prantos e gesticulando nervosamente, parentes de falecidos na tragédia deram as mãos e se abraçaram, em corrente. Um intervalo de 40 minutos para a janta foi chamado para interromper esse momento de maior comoção e dor desde o começo do júri.
No início do interrogatório, Spohr descreveu o princípio dos problemas na Kiss, causados por ruídos que atrapalhavam vizinhos.
— Era uma vizinha o problema. Eu tentei de tudo pra resolver. (...) Fizemos a obra, trocamos o palco de lugar, e seguia o barulho. A gente fez parede de pedra, forro duplo de gesso com lã de rocha e lã de vidro. Continuou. Vibrava o quarto da vizinha. Foi feito uma parede, ou duas, ou três, de gesso no apartamento da vizinha. Pintei apartamento dela para fazer agrado e troquei janelas, com vidro duplo — relatou Spohr, abordando a poluição sonora que causava incômodo aos vizinhos e que levou o Ministério Público a chamar a Kiss à assinatura de um termo de ajustamento de conduta (TAC) para conter o ruído.
As obras de alvenaria para fazer o isolamento acústico não funcionaram plenamente, disse Spohr, e o engenheiro Miguel Pedroso, que projetou as intervenções, manteve a postura de não recomendar a instalação de espuma.
Spohr disse que havia uma “divergência” entre Pedroso, que não indicava espuma, e o engenheiro Samir Samara, que supostamente teria recomendado esse composto para um “tratamento acústico”. Samara nega ter feito essa indicação.
Spohr seguiu seu relato contando que Samara estava muito ocupado e, por isso, teria recebido a sugestão de que ele próprio providenciasse a colocação de espuma no palco da Kiss. Inicialmente, usou retalhos velhos que tinha na boate guardados, os quais Pedroso havia mandado arrancar no passado. O réu disse não ter gostado do resultado estético e explicou ter comprado novo composto, que foi instalado por seus funcionários.
Foi essa espuma que, no dia da tragédia, acabou incendiando ao ser alcançada por fagulhas de um artefato pirotécnico erguido pelo vocalista Marcelo de Jesus dos Santos, da banda Gurizada Fandangueira.
Com a abertura dos depoimentos por Spohr, o histórico júri da Kiss, o maior já realizado no Rio Grande do Sul, entra na reta final e se aproxima da sentença, estimada para sair na madrugada de sábado.
"A prefeitura de Santa Maria foi a mais investigada do planeta", diz Schirmer
O júri começou com o depoimento de Cezar Schirmer, ex-prefeito de Santa Maria. Na época o incêndio, a Polícia Civil chegou a recomendar que Schirmer fosse processado judicialmente, mas a recomendação acabou arquivada. O ex-prefeito centrou o início do depoimento nisso.
— Havia um esforço desde o início no sentido de dizer: “Falta mais gente para ser julgada”. É uma narrativa, para responsabilizar 50, 30, 20... E diminuir as responsabilidades individuais. Sou advogado, compreendo. Mas não fiz nada, doutor. Absolutamente nada que pudesse comprometer a mim. E nenhum servidor da prefeitura contribuiu para o incêndio — relatou ao juiz Orlando Faccini Neto.
Toda a primeira parte do depoimento foi dedicada a rememorar o dia do incêndio, 27 de janeiro de 2013. Mas subiu o tom ao falar do inquérito policial, que considera “uma aberração jurídica”, com um envolvimento da prefeitura “inadequado e injusto”.
—A prefeitura de Santa Maria foi a mais investigada do planeta e não acharam nada — afirmou.
Ao defender as ações da prefeitura, Schirmer pontuou que a boate Kiss foi multada sete vezes por fiscais municipais ao longo de sua existência. E ainda sofreu um embargo. As multas totalizavam R$ 16 mil na época, cerca de R$ 40 mil nos dias atuais, calculou.
Familiares de vítimas que assistiam ao depoimento do ex-prefeito se retiraram em protesto pela defesa inflamada que ele fez das ações da gestão. Um deles passou mal e precisou de atendimento médico.
"Quem tem poder de polícia para fechar uma boate é a prefeitura", diz promotor
Outro depoimento muito aguardado era o do promotor de Justiça Ricardo Lozza. Ele é o responsável pelo inquérito civil que estabeleceu um termo de ajustamento de conduta (TAC) para restringir a poluição sonora da Kiss, alvo de reclamações de vizinhos da casa noturna em Santa Maria.
Advogados de defesa dos quatro acusados pelo incêndio, sobretudo os defensores do réu Elissandro Spohr, dizem que a danceteria só funcionava porque Lozza permitiu. Em seu depoimento, o promotor procurou desqualificar essa afirmativa. O TAC assinado entre o promotor e a Kiss, no final de 2011, definia que a boate contrataria um engenheiro que seria responsável por fazer um projeto técnico de obra de isolamento acústico. O documento do engenheiro Miguel Pedroso, no memorial descritivo, determina a troca do palco de lugar, construção de paredes em concreto e colocação de gesso no forro da pista de dança, com preenchimento de lã de vidro. Não há nenhuma menção à colocação de espuma na boate, composto que pegou fogo no dia da tragédia.
Conforme o promotor, o acordo que buscava reduzir os ruídos da Kiss foi firmado mais de um ano antes da tragédia. Ou seja, anterior aos fatos que levaram ao incêndio. Lozza também afirmou ter ouvido três "grandes inverdades" a respeito da boate.
A primeira: a espuma que queimou fazia parte do acordo do TAC.
— É uma inverdade do tamanho do universo. Não se fala em espuma naquele documento.
A segunda: o promotor esteve dentro da boate Kiss. Lozza diz que isso é mentira. Ele narrou, no depoimento, que as obras do isolamento acústico originadas no TAC foram fiscalizadas por servidores do Ministério Público e pelo engenheiro Miguel Pedroso, responsável técnico pelas intervenções, acompanhados por Spohr, sócio da Kiss.
A terceira inverdade, segundo Lozza, é o questionamento sobre o motivo pelo qual o MP não fechou a boate:
— Não fechei porque não sou autoridade administrativa. Eu não tinha esse poder. Quem tem poder de polícia para fechar uma boate é a prefeitura, a municipalidade.
Outro depoimento foi de Geandro Kleber de Vargas Guedes, gerente de vendas de bebidas. Ele costumava vender energéticos para abastecimento de duas boates relacionadas aos réus, a Absinto Hall e a Kiss.
— Kiss e Absinto Hall eram boates diferentes, com gestões diferentes. No ramo de casas noturnas, Mauro era associado à boate Absinto, e Kiko, à boate Kiss.
Também depôs o publicitário Fernando Bergoli. Ele veiculava publicidade da Kiss. A testemunha, que atuou no grupo RBS em Santa Maria, disse que no ramo de casas noturnas Mauro Hoffmann, o Maurinho, era associado à boate Absinto Hall, e Kiko à boate Kiss. Poucos sabiam que Maurinho também era sócio da Kiss.
— A percepção que tive é de não envolvimento de Mauro com a Kiss. Tanto que Kiss e a Absinto Hall eram tratadas como clientes diferentes, sem conexão. Em tratativas de negócios, assuntos relacionados à Kiss eram discutidos com Elissandro Spohr, e à boate Absinto Hall, com Maurinho — detalhou Bergoli.