Um desenlace mais breve do que o esperado no depoimento das últimas quatro testemunhas permitiu que a fase dos interrogatórios dos réus começasse às 18h07min desta quarta-feira (8), no júri da boate Kiss, com a inquirição do acusado Elissandro Callegaro Spohr. Ele era o sócio que tocava o dia a dia da casa noturna onde um incêndio matou 242 pessoas e feriu outras 636 no dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria.
Narrando os fatos que sucederam após a tragédia, Spohr entrou em desespero e declarou estar farto.
— Querem me prender, me prendam. Estou cansado — desabafou, em tom de voz mais elevado, intercalado com choro e engasgo, em uma cena forte.
Ele afirmou que perdeu amigos, funcionários e que recebeu mensagens de pessoas dizendo que ele deveria “se matar”. Nesses momentos, deixou de falar ao microfone do júri e se virou em direção às famílias das vítimas que acompanham no plenário. Disse que nunca desejou a tragédia e que a Kiss era uma boa casa de festas. Enquanto Spohr se justificava, aos prantos e gesticulando nervosamente, parentes de falecidos na tragédia deram as mãos e se abraçaram, em corrente. Um intervalo de 40 minutos para a janta foi chamado para interromper esse momento de maior comoção e dor desde o começo do júri.
No início do interrogatório, Spohr descreveu o princípio dos problemas na Kiss, causados por ruídos que atrapalhavam vizinhos.
— Era uma vizinha o problema. Eu tentei de tudo pra resolver. (...) Fizemos a obra, trocamos o palco de lugar, e seguia o barulho. A gente fez parede de pedra, forro duplo de gesso com lã de rocha e lã de vidro. Continuou. Vibrava o quarto da vizinha. Foi feito uma parede, ou duas, ou três, de gesso no apartamento da vizinha. Pintei apartamento dela para fazer agrado e troquei janelas, com vidro duplo — relatou Spohr, abordando a poluição sonora que causava incômodo aos vizinhos e que levou o Ministério Público a chamar a Kiss à assinatura de um termo de ajustamento de conduta (TAC) para conter o ruído.
As obras de alvenaria para fazer o isolamento acústico não funcionaram plenamente, disse Spohr, e o engenheiro Miguel Pedroso, que projetou as intervenções, manteve a postura de não recomendar a instalação de espuma.
Spohr disse que havia uma “divergência” entre Pedroso, que não indicava espuma, e o engenheiro Samir Samara, que supostamente teria recomendado esse composto para um “tratamento acústico”. Samara nega ter feito essa indicação.
Spohr seguiu seu relato contando que Samara estava muito ocupado e, por isso, teria recebido a sugestão de que ele próprio providenciasse a colocação de espuma no palco da Kiss. Inicialmente, usou retalhos velhos que tinha na boate guardados, os quais Pedroso havia mandado arrancar no passado. O réu disse não ter gostado do resultado estético e explicou ter comprado novo composto, que foi instalado por seus funcionários.
Foi essa espuma que, no dia da tragédia, acabou incendiando ao ser alcançada por fagulhas de um artefato pirotécnico erguido pelo vocalista Marcelo de Jesus dos Santos, da banda Gurizada Fandangueira.
Com a abertura dos depoimentos por Spohr, o histórico júri da Kiss, o maior já realizado no Rio Grande do Sul, entra na reta final e se aproxima da sentença, estimada para sair na madrugada de sábado.
Spohr começou o depoimento respondendo a perguntas do juiz Orlando Faccini Neto, presidente do júri. O magistrado esclareceu que ele tinha direito ao silêncio e poderia recusar-se a atender qualquer indagação das partes. De antemão, a defesa de Spohr, conhecido como Kiko, afirmou que ele responderia somente a questionamentos do magistrado e de Jader Marques, seu advogado.
O magistrado questionou se Spohr, antes da tragédia, já tinha visto a Gurizada Fandangueira se apresentar com fogos de artifício. Antes do júri, em entrevistas, o réu havia dito que jamais havia presenciado pirotecnia do conjunto musical. Nos depoimentos de testemunhas, houve manifestações de que era corriqueiro o uso dos fogos pela banda.
No júri, respondeu:
— Eu não vi eles fazerem esse negócio. Não vi banda nenhuma fazer (show pirotécnico). Se fizeram, eu não vi.
O magistrado permaneceu no tema e Spohr afirmou, por fim, que “não autorizou” o uso de fogos pela Gurizada Fandangueira. Spohr também disse que não conversou com a banda para avisar que a casa havia passado por obras e que a espuma tinha sido colocada. Spohr avaliou que a banda acreditava que “nao pegava fogo”, em referência à pirotecnia.
Kiko, como é conhecido, contou que chegou a discutir com integrantes da banda no presídio, quando foram detidos em 2013, sobre o uso corriqueiro ou não de fogos, cada qual com sua versão. O vocalista Santos e o produtor de palco, Luciano Bonilha Leão, pelas suas defesas, dizem que era usado frequentemente e era de conhecimento geral entre o circuito noturno.
Kiko diz que lidava com um cliente embriagado que causava incômodo na casa naquela noite quando uma pessoa veio ao seu encontro relatando fogo no palco. Ele, que não estava vendo o show da Gurizada Fandangueira, disse ter dado ordem para que as pessoas saíssem e os funcionários, liberassem. Negou o bloqueio de portas para pagamento de comanda, o que foi discutido ao longo do julgamento. Um ex-barman que prestou depoimento disse que, no máximo, esse embarreiramento teria durado de cinco a sete segundos, até que os seguranças percebessem o que estava acontecendo, um sinistro.
— Vem um monte de gente e me prensa contra um táxi. Aí generalizou a coisa. (...) Foi gerando um tumulto e deu o que deu — descreveu Spohr.
Ele contou ter retirado do interior da boate uma de suas funcionárias chamada Kátia — ela prestou depoimento no primeiro dia do júri.
— Os olhos dela estavam brancos. Quando vi aquilo, pensei: "Meu Deus do céu, o que está acontecendo?" — relatou.
Ele seguiu descrevendo os momentos que sucederam, quando frequentadores da Kiss começaram a se voltar contra ele em meio à tragédia.
— A Vanessa (sobrevivente) veio de braços abertos. Eu pensei que ela vinha me dar um abraço. Mas ela veio me dar um tapa. Alguém disse: "Vamos sair daqui que vão começar a te culpar". Eu não sabia o que fazer. Eu disse que me levassem na delegacia. Eu disse: "Tá pegando fogo na boate" — contor Spohr, caindo em lágrimas.
No início do depoimento, a pedido do magistrado, ele relatou a trajetória da sua vida e disse que acabou entrando no ramo de casas noturnas em desdobramento da sua paixão pela música.
Spohr contou que o sucesso da Kiss teve início a partir da festa chamada “Quinta Absoluta”, em que havia dose dupla de vodka. Neste momento, também se emocionou, recordando “bons tempos" da casa.
O depoimento de Spohr, contando com os 40 minutos de intervalo, durou pouco mais de três horas, sendo encerrado em torno das 21h20min.
Depois da pausa para a janta, Spohr retornou mais recomposto emocionalmente. Ele disse que, no dia do incêndio, “não teria como ter mais do que 800” pessoas na Kiss. Afirmou que, ao chegar nesse teto, novos clientes somente ingressavam quando outros saíam em igual número. Ao longo do júri, testemunhas relataram que a casa estava “lotada” ou “superlotada”, estimando público em torno de mil frequentadores. Além dos 242 mortos, o Ministério Público consignou na denúncia o número — contestado pelas defesas — de 636 feridos. Esses dados já somam 878 homens e mulheres que lá estariam.
O juiz Orlando prosseguiu fazendo questões e, na introdução de uma pergunta mais reflexiva diante da tragédia, quis saber se Spohr se solidarizou com as famílias das vítimas. Se, diante do eventual risco de rispidez do interlocutor que sofreu perdas na Kiss, ao menos havia escrito uma carta pública de prestação de condolência.
— O que a denúncia aponta é que morreram 242 pessoas jovens por conta do contato de um artefato pirotécnico com uma espuma colocada na boate. E não por um alvará ou por bombeiros terem chegado antes ou depois. Ou por má atuação do prefeito — discorreu Orlando, como se estivesse chamando o réu a avaliar a sua conduta.
Nas respostas, Kiko lamentou que o extintor de incêndio do palco não tenha funcionado, embora ele assegure que os equipamentos tenham recebido recarga pouco antes do sinistro. E confirmou que não escreveu uma carta pública ou teve atitude que a valesse.
— Eu sempre me senti envergonhado, sem saber o que dizer. Não tem explicação que eu consiga dar. Eu fiquei como culpado. Vou falar o quê? Eu não tive mais contato com amigos meus. Fiquei quatro meses preso (em 2013) e, de lá, fui para Tramandaí. Fiquei três anos sem sair de casa — relatou.
Ao final das perguntas do magistrado, de forma surpreendente para quem acompanhava o júri, o advogado Jader Marques, que lidera a defesa de Spohr, anunciou que não faria perguntas. Disse que estava satisfeito, sem mais argumentações a respeito da decisão. Antes do início do interrogatório, a defesa de Kiko havia dito que ele responderia somente ao juiz e ao seu defensor. O magistrado, inclusive, ressaltou que o réu tinha direito ao silêncio e que não seriam permitidas perguntas de partes que ele não desejasse responder. Por isso, a desistência causou curiosidade.
A promotora Lúcia Callegari, em entrevista coletiva após o encerramento, avaliou que a desistência da defesa em fazer perguntas pode ter relação com a “seletividade do silêncio”. Segundo ela, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem emitido decisões recentes que confrontam a prerrogativa do réu de ser indagado pelos seus defensores e não pelas outras partes. Lúcia disse que, caso Spohr respondesse apenas ao seu advogado, ela pediria que constasse em ata a “seletividade do silêncio” do réu.
O júri da Kiss será retomado às 9h desta quinta-feira (9) com os depoimentos dos outros três réus. Por ordem definida em sorteio, serão interrogados Luciano Bonilha Leão, Mauro Hoffmann e Marcelo de Jesus dos Santos. A previsão é de que o júri da boate Kiss seja finalizado, com a emissão de sentença, até o próximo sábado (11).