A quarta-feira (8) começou com um dos mais aguardados depoimentos do julgamento dos quatro acusados pelo incêndio da boate Kiss, ocorrido em 2013 em Santa Maria e que deixou 242 mortos. Foi ouvido no júri o ex-prefeito da cidade Cezar Schirmer, na condição de testemunha. Ele é o atual secretário de Planejamento e Assuntos Estratégicos da prefeitura de Porto Alegre.
Na época o incêndio, a Polícia Civil chegou a recomendar que Schirmer fosse processado judicialmente, mas a recomendação acabou arquivada. O ex-prefeito centrou o início do depoimento nisso.
— Havia um esforço desde o início no sentido de dizer: “Falta mais gente para ser julgada”. É uma narrativa, para responsabilizar 50, 30, 20... E diminuir as responsabilidades individuais. Sou advogado, compreendo. Mas não fiz nada, doutor. Absolutamente nada que pudesse comprometer a mim. E nenhum servidor da prefeitura contribuiu para o incêndio — relatou ao juiz Orlando Faccini Neto.
Schirmer ressaltou que mais de 20 promotores e desembargadores arquivaram as recomendações de processo contra ele.
O depoimento de Schirmer interessa sobretudo aos donos da boate, Elissandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann, o Maurinho. Réus pelo incêndio, eles alegam que estavam com as documentações de alvarás habilitadas pela prefeitura e, por isso, não podem ser acusados por dolo eventual, quando se assume o risco de matar. Esse enquadramento causa penas mais pesadas e foi decisivo para levar o caso ao júri.
O ex-prefeito chegou ao fórum de forma discreta, pela garagem, evitando curiosos e a imprensa. Subiu até o plenário do júri num elevador reservado para testemunhas do caso.
Toda a primeira parte do depoimento foi dedicada a rememorar o dia do incêndio, 27 de janeiro de 2013. Mas subiu o tom ao falar do inquérito policial, que considera “uma aberração jurídica”, com um envolvimento da prefeitura “inadequado e injusto”.
Schirmer disse que mais de 150 servidores do Executivo municipal foram chamados a depor. Alguns choravam. Um dos funcionários teve isquemia cerebral em decorrência da pressão, alega o ex-prefeito, que considerou “confuso” o inquérito policial:
— A polícia indiciou o chefe da fiscalização e não o secretário da Fazenda. Depois o chefe da fiscalização da Secretaria de Mobilidade Urbana e o secretário. Não tinha coerência nos indiciamentos. Era notória a má vontade da polícia. Alguns policiais tratavam funcionários da prefeitura com imensa grosseria. Disseram que o alvará sanitário estava vencido e não estava, só tinha erro de digitação do ano. O Ministério Público aceitou.
Schirmer falou que o inquérito foi pautado pela imprensa, não pela polícia, “que parecia que desejava envolver a prefeitura de qualquer forma”. Ele lembrou que disputou quatro vezes eleição a prefeito de Santa Maria e ganhou duas. Declarou que não quer misturar política com seu depoimento, mas insinuou ter impressão de que delegados atuaram também nesse âmbito.
Ao defender as ações da prefeitura, Schirmer pontuou que a boate Kiss foi multada sete vezes por fiscais municipais ao longo de sua existência. E ainda sofreu um embargo. As multas totalizavam R$ 16 mil na época, cerca de R$ 40 mil nos dias atuais, calculou.
Schirmer também chorou ao recordar o dia do incêndio. Disse que foi informado dos fatos na boate Kiss quando ainda existiam apenas duas vítimas confirmadas. Relatou ter telefonado para o comandante militar do Sul e para o chefe da Base Aérea de Santa Maria para pedir ajuda.
O ex-prefeito disse que não chegou a falar com o governador do Rio Grande do Sul na época, Tarso Genro, porém recebeu uma ligação da ex-presidente Dilma Rousseff, que estava no Chile. Ele disse que os dois tiveram uma conversa "bastante emotiva". Ao recordar, ele chorou.
Questionado sobre se conhecia a boate, ele negou. Schirmer confirmou que conhecia Mauro Hoffmann superficialmente, por ser um empresário da noite, dono de uma casa noturna conhecida, a Absinto Hall.
Schirmer afirmou ainda que, ao longo desses nove anos, evitou entrevistas por ser um assunto delicado, sobre uma cidade traumatizada.
— Imagine uma cidade vivendo esse clima e o prefeito conflitar com policiais, vereadores, jornalistas. Me autoimpus um silêncio. Hoje estou feliz porque alguém vai falar livremente.
Em determinado momento do interrogatório, Schirmer começou a enumerar viaturas que comprou para a fiscalização e investimentos que fez em horas extras. Levou advertência do juiz no sentido de que limitasse o relato ao caso Kiss.
Familiares de vítimas que assistiam ao depoimento do ex-prefeito se retiraram em protesto pela defesa inflamada que ele fez das ações da gestão. Um deles passou mal e precisou de atendimento médico.
O júri também ficou tenso quando Jader Marques, advogado de Kiko Spohr, disse para Schirmer:
— Se meu cliente está aqui, o senhor tinha de estar aqui também.
Houve também momentos de descontração. Marques lembrou que conhece Schirmer e não só sua biografia. Disse que quando tinha seis anos de idade entregou "santinhos" do então político, quando era candidato. O ex-prefeito e o pai de Jader eram amigos.
O Ministério Público pediu a palavra e destacou a existência de uma advertência interna na boate Kiss, determinando que não fossem usados fogos lá. Schirmer disse que desconhece quem assinou a determinação.
O depoimento de Schirmer terminou às 11h35min, sob reclamação de familiares de vítimas quanto à postura o ex-prefeito. Eles ressaltaram que, em nove anos, ele jamais falou o que disse no júri e que tampouco apareceu na tenda erguida em homenagem às vítimas, em Santa Maria.