A boate Kiss estava com alvará vencido, mas em condições de funcionamento, com extintores e sinalizações luminosas. As informações foram repassadas pelo coronel Gerson da Rosa Pereira, terceiro depoente a ser ouvido nesta terça-feira (7), sétimo dia de júri dos acusados pelo incêndio da boate Kiss.
Pereira era major em 2013 e chefiava o Estado Maior do 4º Comando Regional de Bombeiros, responsável pela região de Santa Maria, quando ocorreu a tragédia, que resultou na morte de 242 pessoas. A testemunha foi convocada pelos defensores de Elissandro Spohr, o Kiko, um dos sócios da danceteria incendiada.
Pereira disse que o alvará para funcionamento da boate estava em processo de renovação, o que permitia que o local continuasse funcionando — era necessário apenas solicitar aos bombeiros a renovação da documentação, que faziam a vistoria para conferir se o projeto e obra correspondiam. Também disse que a fiscalização sobre os revestimentos, como espuma, não era responsabilidade dos bombeiros, segundo a legislação da época.
Pereira chorou em alguns momentos durante o depoimento. A primeira delas, quando lembrou das filhas, que tinham cogitado ir à festa da Kiss na noite do incêndio. As meninas, adolescentes, eram amigas de muitas das vítimas, mas acabaram desistindo por causa de outros compromissos.
O coronel relatou que foi avisado do incêndio às 3h30min de 27 de janeiro de 2013 e que o caos estava instalado quando chegou à boate, com pessoas queimadas sendo transportadas:
— A coisa mais chocante que já vi. Soubemos depois que o gás tóxico matou usuários da boate em dois ou três minutos. Tentei organizar aquilo tudo, porque eram diversas instituições trabalhando: bombeiros, Samu, polícia estadual, Exército. Os bombeiros abriram o teto para a fumaça sair, enquanto alguns jovens se ofereceram para abrir as paredes, o que facilitaria a saída de fumaça. Foi uma decisão tomada pelo comandante da operação, e ninguém imaginava que essa fumaça seria tão letal.
O major chegou a ser condenado a seis meses de prisão, em 2015, por fraude processual em relação a documentos da boate. A Justiça entendeu que ele acrescentou documentos ao Plano de Prevenção Contra Incêndio (PPCI) da boate Kiss, que era precário. Dias depois da tragédia, ainda em janeiro de 2013, conforme a denúncia do Ministério Público, Pereira teria acrescentado o croqui e o cálculo populacional da boate no documento que se encontrava no 4º CRB. Isso teria induzido a polícia e a Justiça a acharem que aquela documentação fazia parte do PPCI referente à boate Kiss.
Num primeiro momento, a pena de Gerson foi transformada em prestação de serviços comunitários. Depois, enquanto aguardava recursos, a punição foi extinta por prescrição dos prazos legais do processo.
Pereira considerou “ridículo” o processo judicial que respondeu. Ele disse que recebeu um laudo de uma engenheira que confirmava o cálculo populacional na danceteria e que o colocou no PPCI. A estimativa era de 691 pessoas, ou seja, não haveria superlotação, segundo o bombeiro. O então major encaminhou o documento à Polícia Civil. Acabou indiciado por forjar e enganar as autoridades.
— Imaginaram que eu tinha colocado isso no inquérito de forma a induzir algo, forjei documento. Jamais defendemos alguém errado. Aí a imagem que venderam da gente virou de bandido. Substituiu aquela outra, emblemática, de quem salva vidas — declarou, mais uma vez em meio a choro.