Momento esperado no júri da boate Kiss, o depoimento do ex-prefeito de Santa Maria Cezar Schirmer na sessão desta quarta-feira (8), na condição de testemunha, é motivo de divergência entre as partes quanto à relevância para a decisão dos jurados.
A previsão é de que a inquirição de Schirmer, atual secretário de Planejamento e Assuntos Estratégicos da prefeitura de Porto Alegre, comece às 9h e seja longa.
As bancadas de defesa dos réus Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Hoffmann, que eram sócios da boate, tratam a oitiva de Schirmer como decisiva na tentativa de apontar que a Kiss tinha documentação em dia ou, no mínimo, em tramitação, e passava por frequentes fiscalizações.
A indicação de Schirmer como testemunha partiu da defesa de Spohr, encabeçada pelo advogado Jader Marques. O raciocínio do advogado Mario Cipriani, defensor de Hoffmann, é de que, se estavam com as documentações de alvarás habilitadas, os réus que eram proprietários da boate não podem ser acusados por dolo eventual, quando se assume o risco de matar. Esse enquadramento causa penas mais pesadas e foi decisivo para levar o caso ao júri.
Já para as defesas de Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira, e de Luciano Bonilha Leão, produtor do conjunto musical, o depoimento de Schirmer é visto com mais cautela e menor relevância. Não há, nos casos de Santos e Leão, uma relação direta da conduta deles com fiscalizações e emissão de documentos do município para o funcionamento de empresas. Há também análises de bastidores de que convocar políticos experientes a depor, com conhecimento de normas técnicas e leis, pode representar um risco no sentido de produção de prova.
Já o Ministério Público avalia que “não há responsabilidade do ex-prefeito” e que “não irá entrar nessa guerra”, referindo-se às tentativas das defesas dos ex-sócios de compartilhar responsabilidades pela tragédia com o poder público.
Cipriani, da defesa de Hoffmann, antecipa que irá abordar o termo de ajustamento de conduta (TAC) que determinou a realização de obras de isolamento acústico na boate para conter ruídos, a partir de um projeto técnico de engenharia. Cipriani narra que, no trâmite do TAC, o Ministério Público enviou ofício à prefeitura de Santa Maria requerendo cópia do alvará de funcionamento da boate, emitido pelo município.
— A prefeitura devolveu dizendo que o alvará de funcionamento estava vencido. Isso foi em março de 2012. De março a maio de 2012, quando foi emitido o novo alvará de funcionamento, a boate funcionou sem este alvará e com autorização do MP, que deu prazo para a renovação acontecer. O que quero mostrar é que isso era uma rotina. Não se pode punir as pessoas por dolo quando elas tinham as licenças. E, nos curtos períodos que não se teve, houve anuência — avalia Cipriani.
Ele diz que o depoimento é “muito importante e que há muita coisa para esclarecer”. O advogado de Hoffmann ainda pretende indagar Schirmer sobre o suposto “sumiço de documentos” de dentro da prefeitura de Santa Maria na noite posterior à tragédia, ainda em 27 de janeiro de 2013.
Cipriani deve mencionar um documento que teria data de 2009, antes de a boate pertencer a Spohr e Hoffmann, no qual um arquiteto vinculado ao município apontou irregularidades técnicas na Kiss. Schirmer deverá ser confrontado com esse ofício e questionado sobre eventuais responsabilidades ou prevaricação da sua gestão.
— Depois disso, foram expedidos os alvarás de funcionamento. Se tem apontamento e, tempos depois, tem expedição de alvará, é porque as questões foram sanadas — avalia o defensor de Hoffmann.
Um dos advogados envolvidos nas defesas, sob anonimato, diz que Schirmer “não é o seu alvo”. Ele avalia que o ex-prefeito, de longa experiência política e conhecedor de arcabouços legais, “vai se sair bem no depoimento”.
A advogada Tatiana Borsa, da defesa de Santos, afirmou que somente nesta quarta-feira, durante a inquirição, decidirá se fará ou não questões. Ela avalia que a oitiva é mais relevante “para os proprietários” da Kiss.
— Em princípio, não tenho intenção de perguntar, embora eu tenha sido cobrada pelas redes sociais para questionar o Schirmer. Esse processo é político, envolve autoridades que se esquivaram de responsabilidades, saíram impunes para tudo cair nesses aqui (quatro réus) — argumenta Tatiana.
A promotora Lúcia Callegari, do Ministério Público, começa a abordagem do assunto com uma pergunta:
— Quem emite o PPCI (Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio)?
Como a responsabilidade por esse documento é do Corpo de Bombeiros Militar, ela entende que a inquirição de Schirmer não é objeto relevante para o júri dos quatro réus.
— A prefeitura não tinha nada o que fazer em relação ao PPCI, não vejo nenhuma responsabilidade do prefeito. Tinha uma lei municipal (da década de 1990) dizendo que a prefeitura poderia fiscalizar se não estivesse regular nesse aspecto, mas os bombeiros tinham de comunicar isso. E a Kiss tinha o PPCI em fila para a renovação. Não vou entrar nessa guerra. Já temos muitas guerras — diz a promotora.
Ela ainda rebate a defesa de Spohr, que tem buscado suscitar que outros possíveis responsáveis pela tragédia não estão no banco dos réus, sobretudo do poder público. A Polícia Civil, na conclusão do inquérito, apontou “indícios de que a conduta” de Schirmer “concorreu para o resultado da tragédia” e remeteu o caso para análise da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde são analisadas questões processuais referentes a prefeitos. O Ministério Público entendeu que Schirmer não deveria ser denunciado e a 4ª Câmara Criminal arquivou o caso. O político não se tornou réu e está quite no caso.
A promotora rebateu os protestos da bancada de Spohr de que o banco dos réus deveria ser mais largo:
— Por que a defesa (de Spohr) nunca se revoltou pelo fato de a irmã e a mãe dele (Angela e Marlene), que estavam no contrato social da Kiss, não terem sido denunciadas pelo MP? Elas foram indiciadas por homicídio doloso. E o gerente da Kiss, cunhado dele, também foi indiciado e não denunciado. Por que não se levanta contra isso?