Começou às 14h desta quinta-feira (9) o derradeiro depoimento do júri dos quatro acusados pela morte de 242 pessoas no incêndio da boate Kiss. Foi o interrogatório de Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira, que tocava quando aconteceu a tragédia.
Marcelo chorou desde o início ao rememorar sua trajetória de menino com pouca instrução, sem posses, que ganha a vida como azulejista.
— Música sempre foi bico, mais distração do que dinheiro. A maioria que vive de banda não ganha dinheiro. Mas a gente gostava, nos criamos em CTG. E foi aí que começamos em boates e fomos convidados para tocar na Kiss.
Marcelo diz que a banda tocou duas vezes na casa noturna após a reforma da boate. Ele confirmou que os músicos ganhavam pouco mais de R$ 50 cada um para se apresentar e que até pensava em sair do grupo. Mas seguiu, pois os companheiros não encontravam um substituto.
O músico confirmou que os artefatos pirotécnicos eram comuns nos shows da Gurizada Fandangueira. Inclusive na Absinto, a outra boate de Mauro Hoffmann, um dos donos da Kiss.
Sobre a noite da tragédia, 27 de janeiro de 2013, afirmou ter chegado na boate e a fila para entrar tinha uma quadra de comprimento. Ele queria que a esposa, Vivi, fosse junto, mas ela não quis. Não era de sair à noite.
— Minha finada mãe disse pra minha mulher, a Vivi: “Vai com ele. Aproveita. Tu não sabe o dia de amanhã”. Ela não foi, fez um olhar contrariado. Veja só o senhor — relatou o músico ao juiz Orlando Faccini Neto.
Marcelo disse que, quando começou o fogo, tentou apagar com um extintor. Não funcionou. Então outros músicos jogaram água no fogo. Nada.
— Eu tive uma chance só de apagar o fogo, e não consegui.
Questionado sobre os extintores, se estavam com peso correto, ele disse que não tinha como saber.
— Quando tu vai numa boate, imagina que tudo está certo — contrapôs.
Também descreveu como saiu da boate:
— Quem me tirou de lá foi meu irmão. Só estou aqui respondendo a esse processo porque ele me ajudou. Eu voltava em direção ao fogo. Eu não conseguia respirar. Os olhos me apertavam, não enxergava nada. Não lembro como saí de lá. Voltei a mim lá fora, com uma cena de guerra. Nunca tinha visto um negócio daqueles. Pessoas chorando…
Marcelo relatou que nem conseguia assimilar onde estava. Foi ao supermercado.
— Quando me dei por conta, estava no meio de pessoas mortas — prosseguiu, em meio a mais uma crise de choro.
Dali foi para um posto de saúde e recebeu medicamento para desintoxicação. No dia seguinte, ainda tossindo, foi preso. Ele disse que precisou de novos atendimentos médicos, mas que isso ficou na promessa, que não conseguiu mais tratamento dentro da prisão.
— Quando saí da prisão, passei necessidade. Ninguém queria me dar serviço mais. Aí um empresário que me conhecia me ajudou, me deu serviço — desabafou
Marcelo disse que tinha crises de falta de ar durante o serviço como azulejista. Um dia se sentiu mal, dor nas costas, e foi numa unidade de pronto atendimento (UPA). Falou para a médica que era o vocalista da banda que tocava na noite do incêndio.
— Ela ficou só me olhando, pensando. Aí me mandou para tratamento na mesma ala onde cuidavam de sobreviventes da Kiss. Decidi não ir. Ela avisou que, se eu não fosse, poderia morrer em quatro ou cinco anos. Mas eu tinha vergonha. Não fiz exames, só tomei os remédios. Melhorei após uns dias sem trabalhar — descreveu.
Cinco meses atrás Marcelo foi contaminado pelo coronavírus. Ele e toda sua família.
— Aí piorei. Bem no dia do aniversário da minha filha. Ligaram para minha esposa e falaram que minha mãe tinha falecido de covid-19 — narrou o réu, em meio a mais uma crise de choro.
Em relato a sua advogada, Tatiana Borsa, o réu disse que não tem trabalhado mais em razão da covid. Faz fisioterapia há cinco meses, duas vezes por semana. Toma medicação contínua (mostrou aos jurados uma grande quantidade de remédios e uma bombinha de ar). Continua com dores nas costas e falta de ar.
Marcelo falou que não vive, sobrevive. Um dia após o outro. E declarou que deseja justiça, a ele e a todos envolvidos pela tragédia. Falou que, no dia em que viu as fotos da tragédia, não conseguiu sair da cadeira.
— Dia 27 nunca saiu de mim. Ninguém merece ficar nove anos sofrendo. Acordo e durmo pensando no dia 27. Nada mais faz sentido. Uma das minhas filhas, de seis anos, chegou um dia da escola e falou baixinho no meu ouvido: “pai, tu matou o tio do meu colega?”. Abracei ela e dei um beijo.
Marcelo concluiu seu depoimento por volta das 15h20min, dizendo que em nenhum momento pensou que seus atos causariam uma tragédia. Que não iria se suicidar, usando o artefato. Convidado a falar aos familiares de vítimas, disse:
— Se fiz algo de errado, peço perdão.