O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) irá julgar dois homens flagrados pegando comida vencida na área de descarte de um supermercado. A dupla foi sumariamente absolvida pelo juiz de primeiro grau, mas o Ministério Público (MP) recorreu da decisão e pede condenação por furto e corrupção de menores.
O caso ocorreu por volta do meio-dia de 5 de agosto de 2019, em Uruguaiana, na Fronteira Oeste. Após receber o comunicado, a Brigada Militar deslocou policiais a uma área de um supermercado onde são descartados alimentos com data de validade vencida. Não havia mais ninguém no local, mas circulando pelas redondezas os agentes localizaram Fábio Soares de Oliveira, à época com 38 anos, Sandro Silveira Rodrigues, 34, e um adolescente de 13 anos.
Com eles foram encontradas 50 fatias de queijo, 14 linguiças calabresa, cinco pedaços de bacon e nove pedaços de presunto. Todos os produtos estavam vencidos. Em diligência conduzida no inquérito, os alimentos foram avaliados em R$ 50 por dois peritos. Os produtos foram apreendidos e devolvidos ao supermercado, onde foram descartados novamente.
Levado à delegacia, o trio se negou a prestar declarações, afirmando que só falaria perante um juiz. Rodrigues e Oliveira acabaram indiciados por furto pela delegada Alessandra Xavier de Siqueira. Responsável pela acusação, o promotor Luiz Antônio Barbará Dias apresentou denúncia, acrescentando ainda o crime de corrupção de menores e citando antecedentes criminais da dupla.
Oliveira foi alvo de três inquéritos, mas jamais condenado. Já Rodrigues respondeu a cinco inquéritos, sendo condenado em 2004 e 2006 por porte ilegal de arma e roubo. As penas foram cumpridas e, atualmente, ele não tem pendências judiciais.
Como os acusados não possuíam advogado, a Defensoria Pública foi acionada e pediu a absolvição da dupla, alegando que “o fato imputado é irrelevante sob o ponto de vista social” e que o produto do furto “foi avaliado em R$ 50, ou seja, valor irrisório”.
— Lixo não tem valor. Depois de descartado, não é de ninguém. Tanto que os produtos foram devolvidos e voltaram para o lixo. Aquele espaço é privado, mas é um local que as pessoas frequentam porque passam fome. Elas buscam comida vencida no descarte, ninguém está pegando algo na gôndola do supermercado — comenta o defensor público Marco Antônio Kaufmann.
O processo mal chegou a tramitar. Em 7 de julho, antes mesmo dos depoimentos dos réus, o juiz André Elias Atalla absolveu sumariamente a dupla. Invocando o princípio da insignificância, Atalla lembrou que a comida estava vencida e valia R$ 50 para justificar a decisão de não reconhecer eventual ação criminosa. “Não havendo crime de furto, não há de falar-se no reconhecimento do delito tipificado”, concluiu.
Na apelação, o MP reconhece que o suposto crime se revela “bagatelar”, mas volta a citar os antecedentes dos acusados como justificativa para a punição. O promotor afirma que “pode ter insignificante valor material, mas grande valor sentimental para a vítima”. Procurado por GZH, Barbará Dias não quis se manifestar.
Em nota, o MP afirma que “recorreu da absolvição em 30 de setembro por discordar do argumento do juízo dado o contexto dos fatos. Os réus, inclusive, apresentam condutas anteriores voltadas à pratica de ilícitos, tendo um deles sido condenado por roubo. O recurso contra a absolvição foi recebido em 30 de setembro de 2021, e o MP aguarda apreciação”.
O processo foi encaminhado ao TJ, onde será analisado por três desembargadores em uma das câmaras criminais da Corte. Não há prazo para julgamento. Nas contrarrazões de apelação, a Defensoria Pública reproduz a ocorrência policial registrada no dia da prisão da dupla para sustentar a irrelevância do caso. “Tristes tempos em que o lixo (alimento vencido) tem valor econômico, e o Ministério Público se empenha em criminalizar a miséria e o desespero das pessoas em situação de extrema vulnerabilidade”, escreve Kaufmann.
— Olha quanto dinheiro público desperdiçado. Brigada Militar, Polícia Civil, Ministério Público, Judiciário, todos envolvidos neste caso, e agora vai tudo para o Tribunal de Justiça, onde se gastará milhares e milhares de reais para julgar duas pessoas que pegaram R$ 50 em comida vencida — desabafa o defensor público.
Procurados por GZH, Rodrigues e Oliveira não foram localizados.