Otto Meyer morreu em 12 de junho de 1966, com a Varig transformada – era uma das maiores do Brasil, e competia com aéreas de outros continentes. A notícia de sua morte ganhou destaque em jornais como o The New York Times.
Mais de meio século depois, os descendentes carregam com orgulho o sobrenome. GZH apresenta agora um diário do alemão, documento até então desconhecido — durante as entrevistas com os demais convidados, uma simples citação sobre o material gerou alvoroço.
Os contos são escritos à mão, em um caderno guardado por uma de suas netas, a psicóloga Laura Meyer da Silva, 61 anos. Ao receber a reportagem, no imóvel do bairro Auxiliadora, rapidamente é identificada sua predileção: a máscara remete a uma viagem de balão em um céu de nuvens brancas. Na parede do apartamento, pinturas recriam paisagens de praias visitadas. Torres, no litoral norte gaúcho, era um dos locais favoritos da família.
— O pessoal organizava a areia na frente da casa, porque ele ia de avião pra Torres — relembra, com uma foto do avô ao lado do avião aterrissado na praia.
Otto Meyer teve duas filhas, Mariette Meyer da Silva e Imgart Elizabeth Ferdensen. Foi da tia Iga, como era chamada por amigos e familiares, que Laura herdou a pasta com recortes de jornal, fotografias originais, um currículo datilografado e o diário.
Iga escreveu 36 páginas de memórias, parte ditadas pelo pai, outra parcela de suas próprias lembranças. Um dos relatos em primeira pessoa é da infância de Otto, no Haiti: “A tarde estava quente e abafada e somente as enormes árvores, que formavam um teto sobre o riacho, davam alívio a toda aquela gente reunida ali. A maioria naturalmente era negra, pois estamos no Haiti no início do século vinte”, revela uma das lembranças, sobre o período em que o empreendedor da aviação comercial brasileira viveu no Caribe, de 1898 a 1905.
A narrativa segue em tom de encanto com o que foi visto por Otto criança, e expõe a compra das terras na ilha caribenha, por um ascendente da mãe, Marie Aline Labastille, em 1700 – o sobrenome dela, Otto deixou de assinar quando se naturalizou brasileiro.
O texto também cita a pobreza do país, mas destaca as tradições locais: “uma cultura ímpar e uma tradição artística incrível. A linguagem, a dança e a música do povo haitiano refletem uma síncope entre o mundo material e o espiritual que não deve ser ignorada”.
O empresário retrata as origens dos pais, elenca eventos históricos e cita documentos mantidos por gerações anteriores. Admite ter sofrido gozação dos colegas de escola - já de volta à Alemanha - devido ao sotaque francês adquirido nas terras colonizadas.
Em terceira pessoa, a escrita por vezes assume a personalidade da filha, sem tirar o foco de situações que somente o protagonista pode ter experimentado. Um dos exemplos mais claros de que o documento teve páginas conduzidas pelo alemão se passa na Primeira Guerra Mundial, quando foi baleado em combate: “voava como observador na pequena cabine (aberta) atrás de seu piloto, quando o avião recebeu fogo de metralhadora do solo e Otto percebeu que seu camarada fora atingido, pois estava inclinado para a frente. Sentiu que também fora atingido na perna e que o avião caia dentro das linhas alemãs. No hospital militar, o médico o examinou, determinou que a ferida na coxa era de grande extensão e, portanto, teria que amputar a perna. Meyer pediu que aguardassem, pois tinha a convicção de que conseguiria debelar o ferimento. O médico deu de ombros e enfatizou que não via como, pois, aquela perna iria gangrenar”.
Na página seguinte, o relato da guerra é finalizado, com uma revelação curiosa: Otto mostrava a cicatriz a amigos, lesão que virou espécie de troféu de campo.
Em uma nova guinada dos contos, as lembranças da despedida da família, quando embarcou em um navio rumo ao Brasil. Na viagem, estudou a língua portuguesa: “Eu tinha confiança do meu futuro e em minha força” — afirma.
Detalhadamente, o livro de recordações enumera as profissões e cargos ocupados até 1923, ano de chegada a Porto Alegre: mascate (uma espécie de ambulante da época) no Nordeste e representante comercial no Rio de Janeiro são funções citadas, além das primeiras sociedades firmadas antes do que definiu como “a grande batalha para dar início à fundação da companhia aérea”. A procura por investidores teve, como transcreveu sua filha, desconfiança: “Havia gente que o chamava de sonhador e até de picareta”.
Currículo datilografado é provavelmente um dos últimos documentos em vida
Próximo do desfecho, o diário mistura as memórias de Otto Meyer e da filha, e trata de seu afastamento da presidência da Varig – havia um temor de que o negócio fosse estatizado durante a Segunda Guerra Mundial.
Vigiado, o empresário sequer podia ir à praia, pois havia um temor que se comunicasse com submarinos nazistas por ondas sonoras. No livro Nós do Quarto Distrito (Editora Garamond, 2004), o historiador Alexandre Fortes cita a apreensão de um radiotransmissor no Aeroporto São João, local que antecedeu o Aeroporto Internacional Salgado Filho, na Capital. Segundo a investigação, o equipamento seria usado para informar os militares alemães sobre a movimentação de navios inimigos.
O Litoral era destino frequente, caminho percorrido nos compactos Junkers F13. Pedras serviam de balizadores para os pilotos pousarem na areia, relembra Imga, que ajudava no trabalho de organização dos instrumentos adaptados.
Lembro dele mostrando em um globo enorme os locais em que a Varig voava, apontando os países com o dedo.
LAURA MEYER
Neta do fundador da Varig
Otto Meyer foi preso, por sua nacionalidade, apesar de brasileiro naturalizado. Depois de solto, seguiu observado. Um em especial permanecia em frente de sua casa: “O guarda, ao longo do tempo, tornou-se amigo da família e, vez que outra, tocava na campainha e avisava que precisava dar uma voltinha” — ironiza, em uma das páginas.
Folheando o caderno, a neta chega justamente a esse trecho, e se diverte com as suspeitas.
— Ele nunca faria nada contra o lugar que o acolheu, se considerava gaúcho e foi naturalizado brasileiro. Escolheu vir pra cá. Imagina, enviar sinais pelo mar, aos submarinos alemães — conta Laura, rindo.
Um currículo datilografado é, talvez, um dos últimos escritos pessoais de Otto Ernst Meyer. Tem assinatura de 1º de maio de 1966 — ele morreria 42 dias depois, em 12 de junho. Em tons azuis que apontam ter sido multiplicada em um mimeógrafo, as três folhas presas por um grampo detalham conquistas em vida: condecorações da infantaria, a chegada a Recife, em 1921 e o primeiro emprego nas Casas Pernambucanas. A fundação da Varig, seis anos após sua imigração, contou com capital de “mil contos de réis”, detalha.
Logo que o primeiro escritório da Varig foi montado, um anúncio procurava por operários. Poucos se apresentaram, e estes não agradaram Meyer “por serem elementos não confiáveis”, como definiu o fundador em suas anotações. Já o encontro com Ruben Berta é assim descrito: “apresentou-se um moço de dezenove anos, alto, forte, olhos muito azuis e muito francos e que dizia não lhe interessar o quanto ganhasse, queria trabalhar, queria o serviço”.
A neta observa os documentos espalhados sobre a mesa da sala, sempre com um sorriso orgulhoso sobre quem define ser seu maior ídolo. Delicadamente, distribui as fotos e tem a memória remetida à infância. Laura conviveu pouco tempo com o avô.
— Lembro dele mostrando em um globo enorme os locais em que a Varig voava, apontando os países com o dedo. Conversando em Crioulo, idioma que aprendeu no Haiti, e dele chegando com um ovo enorme de páscoa, na nossa casa — rememora.
O sepultamento, foi o primeiro que ela presenciou, ainda criança:
— Tenho a imagem na cabeça, dele deitado, naquele grande salão da Varig. Lotado de gente. Era muito querido por todos — diz.
A psicóloga afirma que o avô não tinha luxos, gostava de uma vida simples e que não fez fortuna. Deixou, segundo ela, um legado histórico:
— A Varig é dos funcionários. É a nossa Varig — repete o lema da companhia.
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