Foi sem qualquer cerimônia que José Mário Aguzzoli, 61 anos, vestiu novamente o uniforme de comissário da Varig. Ao receber a reportagem de GZH, posou para fotos com o quepe azul e branco - apesar de guardado há 15 anos, o chapéu ainda reluz o Ícaro dourado acima da aba. Demitido através de um telegrama, lamenta não ter sido chamado pelas aéreas após 2006, com um objetivo distinto:
— Eu queria voar de novo só para ter certeza que nada se compara ao que foi a Varig. Sair pela porta da frente, não pela porta dos fundos, como fizeram com a gente.
Ele integrou a tripulação por 24 anos. Esteve na companhia do auge, na década de 1980, à queda, quando 5,5 mil foram dispensados. Parte dessas histórias está no livro que escreveu, Tudo É Passageiro (editora Maneco, 2011), em crônicas que sintetizam o período à frente dos Galley - nome dado à cozinha dos aviões.
A obra tem fotos antigas, das turmas em cursos preparatórios, além da reprodução de anotações e documentos. Entre os relatos hilários, o terno de linho que virou bermuda.
Eram recebidos com espumante. Espumante, não, champanhe. Francesa. Com caviar
JOSÉ MÁRIO AGUZZOLI
Ex-comissário da Varig
— Tinha um passageiro com terno de linho, lindo. Era assim que se voava na época. Deu uma turbulência e ele saiu do banheiro, com a calça pintada de azul. Disse que foi amarrar o sapato e enfiou o pé dentro do vaso — gargalha, admitindo que sugeriu cortar a calça da fatiota como bermuda.
O comissário lembra em detalhes o serviço de bordo da primeira classe. Refeições servidas em porcelana japonesa, talheres de prata e guardanapos de linho, com canapés de entrada e variadas tortas doces.
— Eram recebidos com espumante. Espumante, não, champanhe. Francesa. Com caviar. E aí já vinham livros e revistas, fones de ouvido, protetores auriculares e aqueles tapa-olhos para quem queria dormir — complementa.
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Nos meses finais da empresa, Aguzzoli e seus colegas trabalharam cinco meses sem receber salários. Comprometidos com os passageiros, garantiam o mínimo aos poucos que embarcavam – na época, eram constantes os cancelamentos das viagens, o que deixava o saguão dos aeroportos lotados.
— Imagina, 12 horas em um voo internacional e não tinha café, papel, açúcar... A gente se ligava e perguntava "tu vai levar o que? Café? Eu levo açúcar" — exemplifica.
O passado, que surge com facilidade de sua memória, também é exibido na sala do apartamento, no bairro Petrópolis: em linha, réplicas do hidroavião Atlântico, prefixo P-BAAA – primeiro a voar comercialmente nos céus do Brasil –, do Electra II – avião de turboélices no qual fez sua estreia como comissário – e do Boeing 727, semelhante ao adquirido pelo grupo de ex-funcionários para virar um museu.
Como tantos outros casais formados na aviação, ele conheceu a esposa dentro da Varig – para ser mais exato, no apartamento acima do seu, em São Paulo, onde Maristela Pallastrelli Aguzzoli vivia com outras três aeronautas da companhia.
A Varig não podia parar, mas parou
O paulista Marcelo William Bottini, 61 anos, esteve à frente da tomada de decisões da Varig em seu momento mais crítico. Com 28 anos de carreira dentro da companhia, ele foi o último a ocupar o cargo de presidente da companhia - justamente durante os oito meses que antecederam sua venda em um leilão no dia 20 de julho de 2006. Naquele momento, a Varig operava com apenas 13 aviões e amargava uma redução de 84% no lucro de seus voos.
— Estivemos muito próximo da "morte" durante esse período. E, estando perto dela, alguns milagres acontecem. Tudo através da força dos funcionários que trabalharam quatro, cinco meses sem receber salários. Minha função era fazer com que a Varig não encerrasse suas atividades — relembra.
Bottini é o exemplo de um típico funcionário de carreira. Ingressou na Varig em 1979 vendendo bilhetes de passagens aéreas no aeroporto de Congonhas, em São Paulo.
— Eu tive oportunidade de ocupar várias posições dentro da companhia. Atuei na Europa, nos Estados Unidos e na América do Sul. Posso dizer que sei o que significava o nome da Varig fora do país. Era uma das poucas coisas boas que o Brasil tinha e que era reconhecida em todo o mundo.
Morando em Miami, nos Estados Unidos, o último presidente da Varig não entrou em muitos detalhes a respeito do período conturbado que a companhia viveu antes de ser vendida. Os 13 meses de quebra-não-quebra desde o deferimento do pedido de recuperação judicial foram marcados por incertezas, salários atrasados e inúmeros voos cancelados.
— Nossa função era não deixar ela parar de voar. Se parasse, iria à falência. Trabalhávamos em duas equipes: uma que mantinha a Varig voando e a outra preocupada com o plano de recuperação. Fomos para um leilão público e vendemos a companhia. As empresas que compraram tinham como proposta fazê-la voltar a crescer e se desenvolver.
Em entrevista à ZH em maio de 2006, Bottini confidenciou que estava "há três meses dormindo em um quartinho" na sede da Varig por conta da turbulenta rotina de reuniões e negociações com credores.
— Minha família vivia fora do Brasil e, mesmo tendo um apartamento na Barra da Tijuca (bairro da zona oeste do Rio de Janeiro), eu ficava no quarto e no banheiro que existia no anexo aos escritórios da Varig. Uma questão importante nesse período era que ali encontrava o silêncio. Conseguia ficar concentrando e manter a serenidade — recorda.
Diário de bordo
Bottini entrou em contato com GZH através do preenchimento de um formulário disponibilizado para que os leitores contribuíssem com a construção desta reportagem. O último presidente da Varig compartilhou um comunicado quinzenal que escrevia aos funcionários, intitulado de “Diário de Bordo”. Foram 21 textos que não tratavam dos fatos relacionados à recuperação da empresa, mas histórias e curiosidades do dia a dia.
— O presidente da Varig tinha seu assessor de comunicação que escrevia e respondia à imprensa. Eu criei esse canal direto com os funcionários que era encaminhado através de um e-mail. Eram algumas palavras, histórias escritas por mim, pela pessoa Marcelo Bottini, a cada quinze dias. A repercussão era tremenda — recorda.
Em uma destas mensagens, o presidente da Varig não deixou de lado a situação crítica da companhia, mas tratou de ir além das "necessidades materiais":
“Algumas pessoas me perguntam por que insisto em enviar mensagens a todos vocês. De certo modo as questionam, já que enfrentamos dificuldades de todo tipo e, melhor do que palavras, seria colocar em dias as pendências com os funcionários (salários, etc). Respeito a opinião destes nossos colegas. Mas tenho comigo que, não obstante nossa responsabilidade com os compromissos financeiros da companhia e nossa determinação em cumpri-los, existe também algo maior e mais importante: compartilhar alegrias e tristezas, conhecer as necessidades das pessoas e ajudá-las, ouvir sugestões e implementá-las. Enfim, coisas que vão muito além das chamadas necessidades materiais”, escreveu Bottini no dia 23 de janeiro de 2006.
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