A Varig cresceu pela liderança de Ruben Martin Berta, primeiro funcionário e presidente de 1942 a 1966. Nascido na capital gaúcha, teve tamanha notoriedade que recebeu uma série de homenagens póstumas, com destaque, em Porto Alegre, para o bairro limite com a cidade de Alvorada. A grafia da região tem um “M” no lugar do “N” da certidão de nascimento de Ruben Berta, convenção do alfabeto luso-brasileiro.
Em meados de 1950, Berta enviou o pai de Ernani Rey Gomes a um extenso terreno na Zona Norte. Era um descampado, com solo úmido, sem infraestrutura no entorno – uma das vias mais conhecidas da região, a Baltazar de Oliveira Garcia, tinha piso de terra. O agricultor se empenhou em transformar o sítio num loteamento. Durante meses, levou areia para nivelar o chão. Seguia uma ordem direta de Berta: “Todo funcionário da Varig tem que ter sua casa própria”.
Antes do fim da década, as 84 casas de madeira estavam prontas, e o condomínio ganhou dois nomes: Vila Varig/Loteamento Ícaro, ambos utilizados até hoje.
O loteamento idealizado por Berta tinha ares de uma cidadela pacata, do interior, de cercas baixas com gramado. Varanda e amplo espaço interno contemplavam o empregado, que contava ainda com serviços no portão de casa, como transporte para o Aeroporto Salgado Filho.
No início, os imóveis tinham, exclusivamente, trabalhadores da corporação. Eram financiadas diretamente pela Varig, com desconto em folha. Ironicamente, o homem que fez a terraplanagem foi um dos últimos a adquirir seu lote. Ergueu residência e criou seus filhos, em uma área que segue habitada pela geração atual da família.
— Era um paraíso. As crianças brincavam na rua, muitas nem portão tinham. A Varig foi como um irmão, ou como uma mãe mesmo — define Ernani, que cresceu no local e nunca se mudou.
O filho do homem que fez a terraplanagem tem 65 anos de idade. É despachante aduaneiro aposentado. Enquanto atuou, prestava serviço nos hangares da Varig, e começou a namorar uma aeroviária, Oliva de Oliveira Gomes. Casaram-se, tiveram filhos e nunca deixaram a região.
Não havia nenhum prédio ao redor do residencial em 1958, como comprovam fotos de época, impressas em preto e branco em uma revista de circulação interna. Pantanoso, prosperou no fim de uma das ruas uma lavoura com frutas, legumes e verduras, além de um criadouro de aves e outros animais – a granja. Parte dos habitantes tinha responsabilidade de manter a chácara, mas a colheita era compartilhada, segundo a jornalista Ana Teresa Mariani, 69 anos.
— Se plantava milho, aipim, batata doce, e todo tipo de hortaliça. E ninguém entrava na área um do outro — relembra.
Ana foi arquivista na companhia. É mais uma das atuais moradoras que cresceu ao lado de filhos de "variguianos" - logo depois, passou ao time de funcionários. Mora há 63 anos na mesma casa que seu pai comprou, um imóvel rodeado de plantas, às margens de onde foi criada a roça comunitária.
Como uma comunidade onde todos se conhecem, a Vila Varig realizava seus eventos em praça pública. Entrada e saída da Avenida Comandante Harald Stunde eram bloqueadas ao trânsito, para comemorar aniversários, feriados e demais festividades. Segundo o livro O Rastro da Bruxa – História da Aviação Brasileira no Século XX (Edipuc, 2014), o piloto que empresta seu nome ao logradouro integrou a primeira equipe que morreu em um acidente aéreo da Varig. Em 1942, Harald Stunde pilotava um Junkers Ju-52, batizado de “Mauá”. Após bater na vegetação, já sem uma asa, o avião caiu às margens do Guaíba. O comandante, um tripulante e quatro passageiros morreram.
Após seis décadas, tudo mudou
Quase 65 anos depois, as casas de tábuas em tons amarelados quase não existem mais. Deram lugar a construções de alvenaria. Um lote que antes residia uma família, sustenta agora em média três moradias. Conjuntos habitacionais foram construídas ao redor do terreno, com dezenas de apartamentos por prédio.
Com um olhar mais apurado, se veem ainda duas residências com madeiras da época de sua fundação: uma espécie de claraboia acima da varanda se assemelha a revelada por fotos cinquentenárias, e as cores também são pistas da originalidade apontada pelos vizinhos.
Se por fora os imóveis mudaram, o dia a dia na casa de Vera e Oscar Wolkmer segue sendo falar da “mãe” Varig. Juntos desde a adolescência - há 50 anos -, a controladora de produção e o mecânico responsável pela manutenção das aeronaves respondem, sem pestanejar, que deixariam a vida de aposentados se a companhia aérea ainda existisse.
Todo mundo queria trabalhar na Varig
OSCAR WOLKMER
Mecânico de aeronaves aposentado
— Não tinha empresa igual a Varig. Não tinha e nunca vai existir. Eles cobravam, tinha que ser pontual e trabalhar com excelência, mas ofereciam tudo que a gente precisava — afirma Oscar, 64 anos.
O mecânico entrou na companhia aos 16 anos de idade. Continuou trabalhando após 2006, em uma subsidiária adquirida pela Tap Linhas Aéreas. Para dar dimensão da concorrência, afirma que, na seleção para operar os hangares, havia mais de mil pessoas disputando 30 vagas.
— Todo mundo queria trabalhar na Varig — relembra.
Vera tem ligações ainda maiores com a Viação Aérea-Riograndense: toda a família trabalhou no conglomerado – pai, mãe, irmãos, filhos e parentes de grau mais distante.
— Meu pai entrou na Varig em 1959 e eu nasci em 58. Meu primeiro aninho já foi na casa aqui da vila — calcula.
Até hoje, ela guarda uma coleção com dezenas de canecos personalizados para cada evento: o 3º baile do chope, em 1954, a festa julina de 1974 e a comemorativa dos 50 anos da Varig, em 1977.
Participa de grupos no WhatsApp e no Facebook, que reúnem em torno de 100 descendentes de ex-funcionários, o “Anos Dourados”, crianças que viraram adultas nas vielas do bairro Rubem Berta. Antes da pandemia, um encontro anual era realizado, como mostra um retrato cheio de gente sorridente, em 2019.
— A gente calcula que 80% das pessoas que vivem aqui, hoje, são filhos de funcionários, que ficaram ou voltaram. Temos muito amor pela vila — finaliza a aposentada.
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