A rotina dos operadores do Direito no Rio Grande do Sul está abalada e tumultuada. Desde que o sistema de informática da Justiça Estadual foi alvo de um ataque hacker, na quarta-feira (28), alguns servidores do Judiciário e advogados vivenciaram perdas de arquivos e invasão de contas e tiveram de conviver com atrasos processuais – esse, um problema que atingiu todos que atuam nesse ramo.
Só no Judiciário Estadual existem cerca 18 mil computadores, que tiveram de ser, de uma hora outra para outra, desconectados para evitar aumento da contaminação virtual. O Tribunal de Justiça (TJ) ainda não sabe o tamanho do problema, mas admite ter recebido relatos de que, além da paralisia nos processos, o vírus deixou um rastro de prejuízos particulares a quem acessava os sistemas de informática judiciais no momento do ataque hacker. Entre eles, servidores da Justiça e advogados, que tentam agora desesperadamente reaver seus arquivos atingidos pelos hackers.
GZH contatou algumas dessas pessoas, como a advogada porto-alegrense Fabiana Borba Hilário, especialista em Direito Familiar. Ela costuma acessar o site do Tribunal de Justiça (TJ) assim que amanhece. Para isso, deixa sempre aberto, com a senha salva, o eproc (um dos sistemas de movimentação virtual de processos).
Na madrugada de quarta-feira (28), Fabiana tentou e a página travou. Foram várias tentativas, sem sucesso. A ansiedade cresceu ao longo da manhã, quando começaram as notícias sobre ataque hacker ao Judiciário. Como a informação oficial era que o eproc estava funcionando e os outros sistemas também, a advogada acessou o site. Só que a invasão cibernética estava no auge.
— Quando entrei de novo no sistema do TJ e baixei um documento, apareceu uma tela estranha. Aí o computador trancou inteiro. Nada abria. Depois, desligou e não ligou mais. Levei a um técnico e ele disse que o HD (disco-rígido do computador) foi corrompido. É um desespero, minha vida profissional está toda ali — desabafa.
Fabiana está convencida de que foi vítima de efeito colateral da invasão hacker ao Judiciário. Calcula que, só no que se refere ao ano de 2020, perdeu dados de 95 clientes que estavam armazenados no notebook. Petições, defesas, fotos, pesquisas de doutrina jurídica, cópias de leis. Todas as pastas de todos os clientes sumiram. Ela não tinha backup da maioria dos documentos.
Outras centenas de processos, mais antigos, ela talvez consiga recuperar, quando o sistema do TJ voltar. Mas a respeito dos documentos do notebook, o técnico não deu muita esperança.
Além disso, aconteceram os atrasos. Só na semana do ataque hacker ela não conseguiu acessar 35 processos que estavam com prazo em aberto, porque o sistema do Judiciário estava bloqueado.
— Na realidade, se soubéssemos que o sistema estava contaminado, teríamos evitado acessar o site — pondera.
Um advogado, também de Porto Alegre, acessou documentos no dia do ataque ao TJ. Coincidência ou não, na mesma manhã ele teve um cartão de crédito clonado. Hackers fizeram compras de passagens aéreas e eletrodomésticos em nome dele. GZH o procurou, mas ele prefere não se manifestar. Conforme grupos de WhatsApp formados por advogados, outros episódios assim foram registrados.
O que atingiu a todos os operadores do Direito é o atraso, em cascata, dos procedimentos. O criminalista porto-alegrense Lucio de Constantino calcula que mais de cem processos criminais seus sofreram retardo de prazos na semana passada. Alguns julgamentos começaram e não foram concluídos, outros foram adiados.
— A rotina no escritório, nos casos de urgência, está ocorrendo através de agendamentos junto aos plantões dos foros, por meio de WhatsApp. Felizmente, tenho observado muita atenção e gentileza por parte dos serventuários dos plantões, o que torna menos difícil o momento. Enfim, chegamos à era da aguda criminalidade virtual — diz Constantino.
Outro criminalista, Daniel Tonetto, de Santa Maria, tentou durante a quarta-feira inteira mandar cinco petições. Só conseguiu uma, à noite, direcionada ao plantão por ser urgência.
— Semana passada tivemos momento de volta ao tempo dos processos físicos, o que representa dificuldade para ter atendimento pessoal, face à pandemia — sintetiza Tonetto.
O também santa-mariense Bruno Seligmann de Menezes, advogado criminal, diz que teve muitas dificuldades a semana toda.
— Atrasos, atrasos. Absolutamente nada andou durante a semana. Temos cerca de 200 processos em andamento no judiciário estadual e audiências foram desmarcadas, prazos de defesas foram suspensos e, embora eu tenha apresentado defesa na quarta-feira (28), não conseguimos agendar reunião com juiz.
Policiais e integrantes do Ministério Público também tiveram dificuldade de conseguir mandados judiciais, mas aí apelaram para telefonemas aos juízes. Foram atendidos, na maioria das vezes, com despachos feitos à mão, como admite o desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira, presidente do Conselho de Comunicação do TJ.
— Tivemos de retomar o uso daqueles velhos equipamentos, a caneta e o papel... Quando comecei no Judiciário, há 32 anos, era assim. Mas felizmente, os processos mais modernos já voltaram a ser acessados virtualmente — informa Vinícius.
É fato, com relação a processos novos. Prisões provisórias e solturas de presos estão voltando à normalidade, admitem delegados consultados pela reportagem.
Processos físicos são maioria e muito lentos
Mas se os processos novos já podem ser acessados, como ficam as ações judiciais antigas? Tudo travado, resume o presidente da seção gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ricardo Breier.
Conforme o TJ, tramitam 3,1 milhões de processos na Justiça Estadual (em todas as instâncias), sendo que 64% disso são processos físicos (com a lentidão habitual da movimentação em papel) e os demais, eletrônicos. Dos eletrônicos, cerca de 70% estão com movimentação normalizada. Os restantes, a maioria no sistema e-themis, não estão acessíveis.
Breier diz que o ataque hacker apenas agravou atrasos que ocorrem desde o início da pandemia. Como a maioria dos processos da primeira instância é físico, as dificuldades são inúmeras. Algumas das queixas elencadas pela OAB e enviadas ao Conselho Nacional de Justiça na semana passada, com pedido para digitalização urgente de processos no Rio Grande do Sul:
a) Atendimento presencial às partes limitado ou interrompido, quando há bandeira preta (na pandemia).
b) Prazos processuais físicos (e por vezes eletrônicos) seguidamente paralisados e suspensos.
c) Diversas audiências e sessões de julgamento canceladas e/ou adiadas para após o término do período pandêmico.
d) Necessidade de apreciação exclusiva do magistrado acerca do que é ou não urgente, quanto aos pedidos de vistas realizados pelos advogados em processos físicos.
e) Dependência do advogado para com os servidores cartorários. Quando necessita de documento constante em processo físico, fica à mercê da disponibilidade dos mesmos para o envio, dentre inúmeras outras limitações.
f) Inviabilização do desarquivamento de processos físicos baixados e que possuem documentos e certidões essenciais para a instrução de demandas em andamento (ou novas).
g) Impossibilidade de extração de cópias dos processos físicos.
h) Instabilidade de procedimentos cartorários, gerando dúvidas quanto aos trâmites adotados em cada cartório ou secretaria de varas judiciais.
A advogada Paola Valduga, que atua em processos cíveis, lembra que a imensa maioria dessas ações ainda tramita em papel.
— Há muitos anos esperamos a informatização do sistema no Judiciário Estadual. Uma das solicitações que recebo de escritórios de outras cidades do país é simplesmente digitalizar decisões, pedidos e documentos de processos físicos, que não podem ser acessados via eletrônica. Imaginem a dificuldade de atuar nesses casos, principalmente durante a pandemia. São meses sem poder acessar os processos físicos. E só piorou com o ataque hacker. Apesar de alguns cartórios oferecerem a digitalização de processos, a demora chega a ser de seis meses para a digitalização — reclama Paola.
E qual a perspectiva de punição aos hackers? Ainda não há. A Polícia Civil e o Ministério Público abriram investigação, ainda embrionária, porque a suspeita é que os hackers tenham usado um provedor no Exterior, o que dificulta a apuração.
— Não será um caso solucionado de hora para outra. São 18 mil máquinas. Terá de ser feita perícia nas que podem ter sido alvo e, só então, pedido de ação contra os suspeitos — pondera o delegado André Anicet, da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática, que abriu inquérito sobre o caso.
Contraponto
O que diz o Tribunal de Justiça
O desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira, presidente do Conselho de Comunicação, admite que a pandemia aumentou em muito a lentidão dos processos físicos nos fóruns. Foi iniciado um processo de digitalização de todas as ações, mas teve de ser interrompido porque a empresa contratada deixou o serviço. Enquanto nova licitação não sai, estagiários se dedicam a digitalizar os documentos.